No artigo do mês passado intitulado Democracia? abordámos o problema da liberdade de expressão, ou melhor, da falta dela. Infelizmente situações em que a liberdade de expressão se vê ameaçada têm vindo a proliferar. Participantes do Café Filosófico em Inglês trouxeram dos seus países de origem histórias alarmantes. Ao longo da discussão fomos chegando à conclusão de que se esta falta de liberdade está a acontecer em países ditos democráticos, então, isto significa que a democracia uma vez conquistada não está dada para sempre. É preciso continuar a lutar por ela todos os dias. É assustador que em regimes considerados democráticos estejam a acontecer, um pouco por todo o lado, restrições, censura, retaliações a quem ousa exercer o direito da liberdade de expressão.
Já escrevi sobre assuntos que podem subsumir-se na categoria de filosofia política noutras ocasiões: o artigo Pessoa e Democracia publicado em Setembro de 2018 apresentou o ponto de vista de María Zambrano que entende a democracia como um regime no qual não apenas é permitido senão exigido ser-se pessoa.
O conceito de pessoa é entendido aqui como actualização da realidade autêntica do indivíduo. Por oposição ao personagem que são todas aquelas máscaras que utilizamos e papéis que representamos nos mais diversos contextos. Em Fevereiro de 2021 escrevi Res-pública a ‘coisa’ pública, um artigo que apelava à transparência afirmando que temos direito a perguntar e a querer conhecer até à exaustão as razões dos decisores políticos que nos afetam a todos.
Ocupar-se da coisa pública deveria ser sentido como um dever para todos nós que temos esse direito. Para o mês que vem, a 10 de Março, teremos eleições para a Assembleia da República. Por muito desiludidos que estejamos com a classe política, por muito que não nos revejamos em nenhum partido, mesmo que seja para votar em branco, deveríamos considerar um dever exercer este nosso direito. Devemos honrar tantos que lutaram para que hoje o tenhamos.
O conceito de democracia ― o governo do povo ― está entretecido com o conceito de cidadania. Como estatuto jurídico a cidadania contempla direitos civis, políticos e sociais que se actualizam em três dimensões principais: 1. O cidadão é livre para agir de acordo com a lei e tem também direito a reclamar a protecção da lei; 2. O cidadão pode ser agente político, isto é, pode participar activamente nas instituições políticas de uma sociedade; 3. É-se cidadão de uma determinada nação ou comunidade, assim, a cidadania pode também conferir um sentido de identidade.
Com respeito ao primeiro ponto, o regime democrático surgiu na Grécia no século V a.C. mas não era uma democracia total, nos termos daquela que experimentamos (ou deveríamos experimentar) hoje em dia. Na Grécia Antiga apenas os cidadãos tinham o direito de intervir na vida da polis ― a cidade-estado. Porém, apenas podiam ser considerados cidadãos os indivíduos de sexo masculino, oriundos da cidade-estado, e que fossem homens livres. As mulheres, os estrangeiros e, obviamente, os escravos encontravam-se excluídos. Pese embora o facto destas imperfeições, foi aqui que foi trazido o governo para o povo, passível de ser discutido o destino de um estado em praça pública, e esta questão prende-se com o segundo ponto: o cidadão como agente político. O discurso tornou-se deveras importante. De facto, a nobreza grega que se regia pelo conceito de arete ― excelência é a palavra portuguesa que mais se lhe aproxima ― considerava que tão importante como o manejo das armas era a capacidade de produzir discursos convincentes e oportunos. A capacidade de convencer o outro a juntar-se ao seu ponto de vista através da palavra fez surgir a oratória e a retórica e até uma nova profissão: os Sofistas. Estes foram os primeiros professores do mundo ocidental, vinham precisamente ensinar estas artes argumentativas aos jovens nobres, para que estes pudessem ocupar-se convenientemente dos assuntos de estado.
A terceira dimensão da cidadania acolhe uma nuance psicológica através do sentido subjectivo de pertença. Este afecta necessariamente a força da identidade colectiva da comunidade política. Se um número suficiente de cidadãos demonstrar um forte sentimento de pertença à mesma comunidade política, a coesão social será obviamente reforçada. Se é o contrário que se verifica, então em vez de integração social talvez tenhamos uma desintegração social?
Confesso que me assusta o solipsismo narcísico a que assisto assiduamente:
– Guerra na Ucrânia? Estou suficientemente longe durmo bem.
– Guerra na faixa de Gaza? Já era de esperar, durmo bem.
– Refugiados? Que voltem para a terra deles, durmo bem.
– Desemprego, pobreza, doença. Enquanto não me toca a mim, nem aos meus, durmo bem.
O sentimento de pertença, aludido acima, é, talvez, o instrumento eficaz para, agora, conduzir à reavaliação dos projetos de construção do novo porto de recreio de Faro. O previsto pode vir a tornar-se num crime ambiental porque planeia dragar uma área de 7 hectares de pradarias marinhas, libertando CO2 para a atmosfera equivalente à emissão de um incêndio de 200 hectares de floresta, destruindo o habitat de muitas espécies que utilizam estas pradarias marinhas como berçário. Incrivelmente, a legalidade do projecto baseia-se num estudo de impacto ambiental realizado há cerca de 20 anos que não contempla o estatuto de “habitat prioritário” que foi atribuído às pradarias marinhas. Incrivelmente, este estudo de impacto ambiental obsoleto mantém a sua legalidade através de prorrogações sucessivas. Cabe perguntar se estas prorrogações, apesar de legais, serão morais quando lesam o planeta e todos os que nele habitamos. Já se destruíram cerca de 2000 hectares de sapais e pradarias marinhas nos últimos 130 anos, numa intensa delapidação do ecossistema da nossa Ria Formosa.
Para parar esta acção e prevenir que este crime ambiental ocorra foi criada uma petição que apela ao Município de Faro que não realize o porto de recreio neste local e que considere uma alternativa verdadeiramente sustentável. Aqui está o link, caso deseje juntar-se a esta causa e assinar a petição: https://peticaopublica.com/pview.aspx?pi=PT119483
A cidadania não basta tê-la, é preciso exercê-la!
Este artigo será discutido nos Cafés Filosóficos de Fevereiro a realizar nas seguintes datas e locais:
– 20 Fevereiro | 18.30 | Clube de Tavira
– 21st February | 6.30 pm | Clube de Tavira
– 27 Fevereiro | 21.00 | Club Farense
Sugere-se uma contribuição de 5€ para participação nos Cafés Filosóficos em português.
A contribution of 10€ is suggested for participation in English Café Philo.
Inscrições | registration: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
Leia também: Democracia? | Por Maria João Neves