O autor e o prémio
Com a chancela da LeYa, chegou recentemente às livrarias o romance As Pessoas Invisíveis, de José Carlos Barros, anunciado vencedor do Prémio LeYa 2021 em novembro do ano passado.
Com o valor de 50 mil euros, o Prémio LeYa é o maior prémio literário para romances inéditos em língua portuguesa. O júri do prémio – constituído pelo poeta Manuel Alegre (presidente), a escritora angolana Ana Paula Tavares, a crítica literária Isabel Lucas, o professor José Carlos Seabra Pereira, o poeta Nuno Júdice, o jornalista Paulo Werneck e o professor Lourenço do Rosário – deliberou, por unanimidade, As Pessoas Invisíveis como vencedor entre os mais de 700 originais que concorreram a esta edição do prémio e dos quais apenas uns 14 foram selecionados para apresentação ao júri. O júri descreve este romance como “uma viagem por vários tempos da História recente de Portugal, desde a década de 40 do século XX, narrada a partir de uma personagem ambígua, Xavier, que age como se tivesse um dom, ou como se precisasse de acreditar em ter um dom”.
José Carlos Barros é licenciado em Arquitetura Paisagista pela Universidade de Évora. Transmontano, nascido em Boticas, vive e trabalha no Algarve, em Vila Nova de Cacela. Foi diretor do Parque Natural da Ria Formosa e da Reserva Natural do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António.
Nas várias edições do Prémio LeYa, tem havido alguns casos, raros, em que o autor não é inédito, como aconteceu com o escritor moçambicano João Paulo Borges Coelho. Este é o terceiro romance do autor. José Carlos Barros já tinha sido finalista do Prémio LeYa em 2012, com Um Amigo para o Inverno, publicado pela Casa das Letras (e por nós apresentado há alguns meses). O Prazer e o Tédio, publicado em 2009 (e aparentemente esgotado), foi adaptado ao cinema por André Graça Gomes. Autor de vários livros de poesia – O Uso dos Venenos (2.ª edição, 2018); A Educação das Crianças (2020); Estação – Os Poemas do DN Jovem, 1984-1989 (2020); Penélope Escreve a Ulisses (2021) – começou a sua produção literária a publicar poemas no suplemento «Jovem» do Diário de Notícias nos anos 80.
A intriga
As Pessoas Invisíveis, narrado na terceira pessoa, começa com um primeiro capítulo a que poderíamos chamar prólogo que de algum modo contradiz a advertência inicial configurada na Nota ao Autor. Embora esta nota garanta que “a presente ficção não se baseia em factos reais e não tem a ver com o massacre de Batepá nem com as ocorrências desse mês de fevereiro de 1953 em São Tomé e Príncipe”, páginas depois leremos como na cidade de Berlim, em 1980, é encontrado um caderno que relata a descoberta, no Vale das Freitas, aldeia em Trás-os-Montes, de uma possível jazida de ouro. Ironicamente, aquilo que devia ser o esquisso de um relatório afigura-se mais como um “diário poético” de “conteúdo inverosímil”. O autor preocupou-se mais com a descrição da paisagem bucólica, dos bosques, rios, ribeiras, vegetação, estrutura urbana dos aglomerados perdidos nas serras, e menos com os recursos geológicos de um “metal estratégico das fábricas de armamento do Terceiro Reich” (p. 11).
De 1980 recuamos, no capítulo seguinte, a 1942 (relembre-se que decorre então a não tão distante Segunda Guerra Mundial), período em que se instala a confusão em Vale das Freitas, com a sofreguidão das concessões mineiras que se instalam na região e do caos que rompe a paisagem outrora pacata e um modo de vida rural que se começa a perder, com o escoamento da maior parte dos homens para a exploração do volfrâmio. É nesse ambiente que testemunhamos a improvável amizade de um engenheiro alemão e do jovem Xavier Sarmiento. A intriga centra-se, a partir de então, na figura de Xavier, um jovem que descobre ter o dom de curar e que cedo se deixa fascinar e depois corromper com a ideia do Poder. Até à página 120, o que constitui cerca de um terço do livro, acompanhamos a história ambígua do curandeiro e mágico Xavier, até este ser preso e depois seguir para a Ilha da Província, em África.
Nesta primeira parte, a crítica tem considerado que o autor parece aproximar-se do realismo mágico, dando conta de um país rural, cheio de crendices, à procura de um milagre. Ressalve-se que o realismo mágico se pauta pela indeterminação entre o mundo natural e o sobrenatural, onde o maravilhoso acontece sem criar sobressalto ou espanto. Aquilo que acontece em torno de Xavier, no entanto, é quase sempre descrito de forma ambígua – e aqui reside um dos pontos fortes da escrita: “Não havia unanimidade quanto ao entendimento dos poderes de Xavier Sarmiento. As histórias que se contavam eram de fábula e contradiziam-se.” (p. 135)
A voz narrativa consegue a proeza de deixar o leitor às escuras relativamente à veracidade ou não dos poderes que Xavier reclama ter e teima em treinar: “Xavier sorria por dentro e imaginava a cara do homem se lhe explicasse que o poder está ao alcance de todos. Que, em boa verdade, qualquer pessoa podia curar ou levitar, ou presidir aos governos, ou fazer mover os objetos à distância, desde que acreditasse” (p. 101). O mesmo acontece com as “pessoas invisíveis” que dão nome ao romance, cuja invisibilidade mais do que sinal de oblívio significa proteção.
Como se referiu, dá-se uma fuga de Xavier para África, depois de ter estado preso (a sua pena é ironicamente reduzida devido ao fascínio que os seus poderes exercem), mais especificamente para a Ilha da Província – nome naturalmente fictício, a condizer com a ficção do Império Colonial, agora chamado de Ultramar, de alterar a nomenclatura dos territórios ultramarinos, deixando de haver Colónias para passar a haver Províncias (p. 149), o que acontece mais ou menos nos anos 50 do século passado.
Note-se que com a mudança de cenário que acompanha a deslocação do protagonista, a sua figura torna-se também cada vez mais esbatida perante o leitor. Só ficamos a saber sobre Xavier face ao que os outros contam e evocam, conforme a sua sombra cresce enquanto um temido chefe das milícias. Como se indica na sinopse do livro, e esta é uma das poucas pistas de leitura de um livro tão original quanto desafiante, As Pessoas Invisíveis é um romance que reflete sobre a “ideia de Poder”. Se, na aldeia, o poder advém do dom de curar e de parecer até comungar do espírito e vontade anímica dos outros – nomeadamente mulheres -, na Província o protagonista move-se numa diferente esfera do poder, passando a ser o homem de confiança do Governador e andando quase sempre camuflado, habitado pelo espírito do bosque, e uma vez mais rodeado de versões contraditórias relativas aos seus poderes.
Re-escrita
Conforme Xavier parece perder o protagonismo, entra em cena o inspetor Álvaro Lince, filho de um velho amigo de Santa Comba Dão do doutor Salazar, incumbido de averiguar os “incríveis acontecimentos” daqueles “três dias de princípios de Fevereiro”, em que se deu um massacre.
À semelhança do que acontecia com o caderno encontrado de que se fala no início do romance, também Álvaro tem em mãos recolher informação, com vista à redação de um relatório a enviar à Metrópole, mas sem saber como dar conta das várias atrocidades que descobre: campos de concentração; tortura na cadeira elétrica; celas improvisadas onde se morre por falta de ar; dos “desmandos” de Xavier (p. 193).
Podemos inclusivamente ver esta narrativa como uma alegoria de um país pequeno, outrora rural e insulado, que com a desmesura do poder alcançado, aquando da expansão e da apropriação de novos territórios que o ultrapassavam em tamanho, perde o norte.
A extraordinariedade dos acontecimentos é agora de outra ordem, como muitas vezes também acontece na ficção do realismo mágico, quando se dá conta do horror imposto por regimes totalitários.
Este poderoso romance percorre assim livremente vários episódios da vida portuguesa ao longo de cinco décadas, terminando com os primeiros anos da democracia. Nessa digressão revisita e reescreve acontecimentos inevitavelmente abafados pelo discurso oficial histórico, uma outra forma de invisibilidade, portanto. O autor terá tomado conhecimento do Massacre de Batepá ao deparar-se com uns painéis numa visita a São Tomé e Príncipe. Nesse fevereiro de 1953 teriam morrido mais de mil pessoas. A mortandade destes nativos forros evidencia como o fim legal da escravatura precedeu, em várias dezenas de anos, a sua efetiva abolição.
Um romance aparentemente fragmentário, que deixa a interpretação a cargo do leitor, impelindo-o a coligir os vários momentos de uma narrativa por vezes díspar. Entre os silêncios do livro fica o leitor encarregue de resgatar os seres que aqui vivem da sua invisibilidade, principalmente da sua pior forma: o esquecimento.
Uniforme ao longo do romance é o trabalho sobre a linguagem, a riqueza de um vocabulário que não se atrapalha por ser oralizante, de uma magia telúrica que nada atrapalha, antes cadencia e enriquece as frases, denunciando o autor como poeta.