No universo das culturas mediterrânicas, ao qual pertencemos, a gestão racional da água está interligada à formação de paisagens histórico-culturais da era pré-cristã ao final do período pré-industrial. Existe continuidade dos assentamentos humanos e das culturas da água, hortas (hortus), pomares, criação de animais domésticos, mas também celebrações ritualizadas.
Na história da humanidade a água determinou, ao longo de milénios, filosofias da existência, modos de vida, quotidianos económicos e culturais, rituais religiosos e simbolismos artísticos.
Nas civilizações mediterrânicas a água e o seu aproveitamento racional, transporte e uso para fins diversos, estimulou o desenvolvimento da engenharia e da arquitectura ainda hoje muito presente nas cidades mais antigas de Portugal.
Roma possuía uma agricultura de baixo consumo de água baseada em espécies domesticadas provenientes do ecossistema mediterrânico, desenvolveu comércio intenso em amplas geografias e por centenas de cidades, a sua base de produção eram as “villae”. Os produtos, sobretudo cereais, vinho, azeite, peixe salgado,… eram transportados pelas frotas romanas a partir de portos litorais, já anteriormente gregos e fenícios comerciavam estes produtos.
Raramente os romanos regaram os campos, foi a expansão urbana que determinou o desenvolvimento da engenharia hidráulica, sobretudo o aparecimento dos grandes aquedutos…
Columela (séc.I) na “Res Rustica” escrevia “deve haver uma fonte permanente com água, que nasça dento do povoado ou que seja para ele conduzido de fora… e se esta faltar deve-se construir cisternas e charcas para o gado…”
Os espaços de água (lagos, fontes, fontanários, tanques,…) junto às habitações, nas praças dos centros urbanos, permitiam ambientes frescos, perfumados, coloridos por fruteiras e plantas ornamentais. O uso da água para fins de lazer e recuperação de energias de homens e mulheres ocorria nas termas com águas medicinais (em Portugal estão ainda activas cerca de 40 termas), nos “hammam” ou banhos turcos, prática corrente na antiguidade greco-latina.
A utilização e difusão da oliveira pelos romanos está ligada às múltiplas utilizações do azeite, sobretudo por ser uma árvore resistente ao calor, adaptada ao clima e também com baixo consumo de água. A integração equilibrada de pecuária e agricultura comunitária aumentava a matéria orgânica depositada para adubação nos solos, também a utilização dos rebanhos nos olivais e na limpeza do arvoredo é mencionado nos tratados da agricultura romana.
No período muçulmano, populações habituadas a climas secos do norte de África e Médio Oriente introduziram na Península Ibérica sistemas racionais de captação e reserva de água, que vamos encontrar em vários locais do mundo rural ibérico, nas cidades do Al Andalus. O Alhambra em Granada é um expoente artístico da engenharia e arquitecturas da água.
As espécies do bosque mediterrânico estão adaptadas à escassa pluviosidade e de humidade nos estios, o “stress hídrico”, as plantas possuem casca grossa e dura, produzem substâncias que evitam a evaporação, são resistentes ao fogo e dele recuperam rapidamente. Os botânicos apelidaram-na de vegetação esclerofila, conservam água e mantêm-se verdes todo o ano.
O actual desbaste de espécies adaptadas ao clima e aos solos reduz as defesas para enfrentarmos os problemas resultantes das alterações climáticas e prejudica a biodiversidade. O modelo de produção intensiva, transitoriamente exportador, que se impôs nos campos do sul, vai reduzindo recursos hídricos, ao mesmo tempo que retira dos solos património genético. Sendo o actual modelo económico baseado em conjunturas de mercado, no aumento incessante de produção para obtenção rápida de mais-valias, está a deixar uma pesada herança às presentes e novas gerações, aproximando-se o dia em que será inevitável tentar reverter a situação. Paradoxal é o uso da água para esta nova realidade de uma economia desregulada e discursos políticos contraditórios, que privilegiam e financiam agricultura intensiva, urbanização e turismo massificados, promovendo construção de barragens, transvases de rios, uso de captações e furos subterrâneos a cada vez maior profundidade. São todos aceleradores de desertificação.
A gestão da água é hoje um problema central em Portugal e de toda a Península Ibérica.
Por razões ambientais, económicas, de saúde pública e de identidade cultural as prioridades do País deveriam focalizar-se num rigoroso ordenamento do território nacional e na segurança alimentar dos portugueses, porque todos sabemos que tempos difíceis se avizinham.
Em 2013 a salvaguarda da Dieta Mediterrânica foi assumida pelo Governo Português e por outros seis Estados junto da UNESCO, na sequência da inscrição aprovada por 120 Estados da integração do elemento na lista representativa do PCI da Humanidade. Foi declarado o compromisso de boas práticas de agricultura sustentável com menor consumo de água, redução da emissão de CO2 e alimentação saudável com frescos sazonais e de proximidade mais saudáveis, da protecção e salvaguarda das culturas e do estilo de vida mediterrânico, a “daiata”.
Os valores da dieta mediterrânica são uma bússola imprescindível.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de setembro)