Que cara é essa?
O sol caía a pique sobre as águas do rio Tapajós em plena Amazónia. A Ilha do Amor vestiu-se de crepúsculo, apenas por breves instantes, logo a noite tropical cobriu tudo, nesse imediatismo inverosímil. Brindávamos com duas caipirinhas magníficas e, no entanto, o sorriso teimava em não aflorar a minha face.
Que cara é essa?
Eu às vezes fico com um pensamento pendurado no cérebro. Estou noutras coisas mas o pensamento chocalha, de vez em quando, uma nota dissonante, incomodativa. Como explicá-lo?
Nessa manhã tínhamos decidido ir até à Floresta Nacional do Tapajós (FLONA). Criada em 1974, gerida pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), a FLONA está a cerca de uma hora e meia de distância de Alter do Chão, onde nos encontrávamos. Um pedaço de paraíso no estado do Pará, Brasil.
Foi preciso apanhar um táxi até à FLONA. O condutor indígena pediu-nos autorização para nos mostrar algumas coisas no caminho, acedemos. Ao longo da estrada, em vez da luxuriante floresta, exibiam-se campos de cultivo de soja a perder de vista. O carro andava e andava, mas a paisagem de desmatamento prosseguia, para nosso desespero. É preciso ver isto aqui para se ter uma ideia um pouco mais realista desta devastação. Fui filmando e tirando fotografias à socapa. O condutor continuamente subia os vidros do carro e eu, fazendo-me desentendida, voltava a baixá-los. “Faça isso não! Esse pessoal da soja não gosta de visitas e menos ainda de fotografia”.
Finalmente chegámos à FLONA. Há a possibilidade de fazer “duas trilhas” pelo interior da floresta: a do Jamaraquá e a do Maguari. Optámos por esta última pois queríamos ver a Vovozona, uma sumaúma milenar, venerada pelos indígenas que a consideram Mãe da Floresta. A “samaúma”, como lhe chamam aqui, retém muita água e as suas enormes raízes irrigam o terreno em seu redor, permitindo que muitas outras espécies se desenvolvam à sua volta, mesmo quando há seca. Por outro lado, ao ser uma árvore muito alta, acreditava-se que quem chegasse ao seu cume conseguiria falar com os espíritos. Finalmente, existem lendas que contam que na base da samaúma existe um portal, invisível aos olhos humanos, que conecta a realidade com o universo espiritual. Os seres mitológicos das matas entram e saem por esse portal.
Debaixo de um calor escaldante, ainda que coado pela vegetação, chegámos finalmente à Vovozona. Encostei-lhe a minha testa, como que querendo ouvir o latir do coração desta árvore que aqui está, quase desde o princípio dos tempos. Mas não ouvi… Angustiada, senti que a árvore estava moribunda. Dando a volta ao seu enorme tronco percebi porquê: uma racha enorme atravessava-a de um lado ao outro. A Vovozona não durará muito mais.
Foi o vento forte, disse o nosso guia.
Terá sido mesmo o vento? Assomou a pergunta no meu espírito. Como se pode sentir esta Mãe da Floresta quando o homem extermina os seus filhos. São hectares e hectares de desmatamento, a perder de vista.
Quantos Km mais continua a floresta? Perguntei ao guia, exausta, deixando o meu corpo cair sobre uma das enormes raízes da Vovozona.
A via são 14.
Eu sei. Mas quantos mais a partir daqui, quanto mais há de floresta, insisti.
E ele a contra-gosto: No todo são 23.
São 23 Km de floresta, andámos 7 até à Vovozona, sobram apenas 16. Que acontece depois do Km 23? Por mais que insistisse na pergunta, o guia fingia não me ouvir. Sacou da catana enorme que trazia consigo e dedicou-se a abrir uma enorme castanha que apanhara no caminho, e depois a descascar para nós os gomos lá de dentro, uma magnífica castanha do Pará.
O que há depois do Km 23? Mais desmatamento? Será que a reserva não passa de um cinto de verdura a fazer de conta? O pensamento chocalhava, cada vez mais sonoro, impossível ignorá-lo.
Apesar do cansaço depois daquelas 6h de trilha pela floresta, inquiri o nosso condutor no caminho de regresso. O guia não me quis responder, o que há depois do Km 23?
Ele tem medo de perder a cesta-base, respondeu o nosso taxista, sem hesitar.
O que é isso?
Aqui na comunidade indígena o pessoal não tem direito a cultivar o campo, nem a pescar, nem a tirar uma árvore caída na floresta para fazer mobília ou artesanato. É preciso um monte de autorizações. Aqui na comunidade, dão uma cesta-base com alimentos e o pessoal não pode fazer nada. Se contesta perde a cesta-base.
Só ganham isso, um cabaz de alimentos?
Pois é. Sabe, houve uma empresa multinacional que contratou a comunidade. Uma dessas que dizem que faz comércio sustentável. Aqui o pessoal da comunidade apanhou mais de 50 toneladas de sementes para eles. Ganhavam por dia 3 reais (54 cêntimos) e uma cesta-base.
Mas isso é uma injustiça, uma exploração?!
Pois é. Eu tentei dar voz e lutar por um melhor salário para eles. Aumentaram para três reais e noventa (70 cêntimos).
Isso é ridículo. Inaceitável!
Pois é. Mas aí o pessoal já não quis lutar mais, com medo de perder a cesta-base.
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Que cara é essa? Perguntaste, entre surpreendido e indignado, por me falhar um sorriso, num local paradisíaco, à beira de uma das melhores caipirinhas de sempre.
Apauí Vermelho, respondi por fim. Lembras-te dessa árvore que vimos na trilha? Essa árvore que abraça outra até a sufocar, alimenta-se da energia dela, mata-a e fica no lugar dela. Apauí Vermelho, todos nós, coniventes, a estrangular a floresta e a vida indígena.
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Na Alliance for the Restauration in the Amazon pode ler-se o seguinte: “Quase 20% da cobertura florestal original da Amazônia já foi desmatada: 80,3 milhões de hectares. Estima-se que a degradação das florestas pela exploração madeireira atingiu uma extensão igual ou superior à área desmatada. Em 2019, mais de 1 milhão de hectares de florestas foram desmatados – o maior índice dos últimos 11 anos e em 2020, em plena pandemia de Covid-19, o ritmo de destruição foi ainda mais acelerado. Este nível de desmatamento é extremamente perigoso porque aproxima a região de um ponto onde podem ocorrer mudanças irreversíveis no ciclo hidrológico. Isso tem implicações directas no desenvolvimento social e económico da região e do Brasil, uma vez que a Amazónia influencia o regime de chuvas em grande parte do país e no continente sul-americano.”
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Comemora-se este mês os 50 anos do 25 de Abril. É imperioso que pensemos na liberdade, esse valor ético cuja conquista celebramos. Não teremos ficado aquém do desejado?
Dentro de um enquadramento de legalidade cometem-se barbaridades: exploram-se seres humanos, maltrata-se o planeta que é um bem comum. A ética, como ciência da moral, está socialmente relegada a um plano inferior. Mas será que tudo o que é legal é moral? Talvez valha a pena reflectir nas palavras de Aristóteles: “Há um limite para o tamanho das nações, assim como há um limite para outras coisas, plantas, animais, instrumentos; pois nenhuma delas retém seu poder natural quando é muito grande, ou muito pequena; ao contrário, ou perde inteiramente sua natureza, ou se deteriora.” Estas palavras mostram-nos como já no século IV a.C. existia uma visão cósmica da problemática da civilização humana. Opostamente, o modo de civilização actual deixa-nos cada vez mais próximos do colapso. Toda a sociedade é responsável por esta degradação. O rico destrói o planeta na sua ânsia de crescimento desenfreado, o pobre muitas vezes degrada o planeta por falta de condições para viver condignamente e por falta de informação, o Estado comete barbaridades com a sua negligência na aquisição de conhecimento científico, e com a desresponsabilização dos seus dirigentes gerando uma política desvinculada dos compromissos com o meio ambiente.
Em plena celebração de Abril, talvez um passo no sentido da sustentabilidade e da liberdade de todos - entenda-se aqui o planeta Terra e todos os seus co-habitantes, humanos e não humanos - fosse, justamente, a criação de um quinto órgão de soberania: a Ética Ambiental.
Este artigo será discutido nos Cafés Filosóficos de Abril a realizar nas seguintes datas e locais:
– Em Português: 16 de Abril | 18.30 | Clube de Tavira
– Em Inglês: 21st February | 6.30 pm | Clube de Tavira
Sugere-se uma contribuição de 5€ para participação nos Cafés Filosóficos em português.
A contribution of 10€ is suggested for participation in English Café Philo.
Inscrições | registration: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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