Ao longo destes anos de Café Filosófico, o tema da alma já foi visitado várias vezes. A primeira apresentando a visão cerebralista de Platão que alojava a alma no cérebro; a segunda expondo a visão cardiocentrista de Aristoteles que alojava a alma no coração; a terceira apresentando as razões do coração de Pascal e a metáfora do coração de María Zambrano. Foi com a A canção da Alma que terminámos o Café Filosófico de 2022, inspirados em duas histórias merecedoras de reflexão, apesar de fictícias. Cada um de nós se rendeu à condenação pitagórica de encontrar o número da sua alma e fazê-la soar. Experimentámos, nessa sessão, o poder psicagógico da música a que tanto se referiam os filósofos pitágóricos. Eles acreditavam que a música e a dança eram forças que afectavam directamente a alma, não somente aquele que as praticava, mas também aquele que ouvia e observava. Os sons ressoam na alma e a alma ressoa em harmonia com eles, de tal modo que a boa música pode melhorá-la e a má corrompê-la. Defendiam também que dança tem um poder psicagógico ainda mais forte que o da música, podendo conduzir a alma a um bom ou mau ethos.
Esta relação da alma com o sentido ético é algo que me pareceu merecedor de aprofundamento. Indo ao berço da nossa civilização, a que se referiam os gregos dos poemas Homéricos quando falavam de alma? É o conceito grego de arete que nos pode orientar. Normalmente esta palavra traduz-se por excelência. Porém, existem conotações que apenas estão presentes no vocábulo grego: a arete é uma qualidade que torna os indivíduos que a efectivam em seres superiores, excepcionalmente bons nas suas habilidades. Eram consideradas arete do corpo: a saúde, a força e a destreza, bem como a beleza; e como arete da alma qualidades como a bravura, a astúcia, o sentido de justiça, a prudência e a piedade. Por aqui se percebe a inseparabilidade de alma e corpo, e a consequência de se considerar o adestramento da alma tão exequível como o treino do corpo.
Porém, de acordo com a civilização grega de então, nem todos os homens possuíam arete. Esta excelência era exclusiva da classe nobre. A arete era herdada e apenas a elite aristocrática a possuía desde nascença. No entanto, esta só poderia ser conservada se fosse conquistada através de feitos heróicos. Quer isto dizer, que um nobre possuía a arete em potência, mas esta só se actualizava se se dedicasse a aprendê-la e a actuar de acordo com ela. “O orgulho da nobreza, baseado numa longa série de progenitores ilustres, é acompanhado pelo conhecimento de que essa proeminência só se pode conservar através das virtudes pelas quais foi conquistada. (…) A luta e a vitória são, no conceito cavalheiresco, a autêntica prova de fogo da virtude humana. Elas não significam simplesmente a superação física do adversário, mas a comprovação da arete conquistada na rigorosa exercitação das qualidades naturais.” (Werner Jaeger, Paideia p. 28 29)
A educação grega pretendia tornar os homens em seres superiores, capazes não só de realizar acções do mais alto heroísmo, mas também, de proferir discursos convincentes e oportunos. Havia que desenvolver a mestria nas armas e nas palavras ao mais elevado grau. A heroicidade apenas era atingida se estas duas componentes estivessem presentes.
A educação helénica tinha também uma forte consciência do dever e da honra. Os guerreiros respeitavam-se e aspiravam à honra sendo assim reconhecidos pela sociedade a que pertenciam. Este reconhecimento era uma condição imprescindível. Não existiam normas, teorias ou mandatos que servissem para justificar ou sancionar as acções, nem códigos abstractos ou instituições que as consolidassem. O comportamento individual era avaliado socialmente através dos modelos dos heróis descritos nos poemas homéricos. Para ser considerado bom era preciso ter a capacidade de fazer algo útil ao bem comum. Deste modo, a educação helénica assenta no heroísmo, em fazer a sua beleza, que, como se percebe, estava subordinada a um aspecto mais espiritual que físico. O que aqui salta à vista é que o fazer é que define o sentido de um comportamento: o ethos não brota da reflexão mas sim da acção. A honra era parte integrante da arete e por isso um atributo indispensável a quem queria ser o mais nobre e o melhor entre todos. Não bastava que o próprio se visse como honrado, era absolutamente necessário que todos os outros, a sociedade em geral o considerasse como tal. O sentido ético acontece de fora para dentro: a honra não reconhecida é inexistente. À luz do que aqui foi dito, talvez se perceba melhor a ira de Aquiles que abandona os seus por Agamnenon lhe retirar a sua recompensa de guerra, que incluía a bela Briseide: “Não penso por ti, quedar-me aqui, sem honra, a obter-te bens e riquezas.” (Homero, Ilíada, Canto I).
Actualmente o reconhecimento exterior é bem vindo mas não é absolutamente necessário. Opostamente, para a nobreza dos tempos homéricos, a negação da honra era a maior das desgraças. Como bem explica Werner Jaeger na Paideia: “Os heróis tratavam-se mutuamente com respeito e honra constantes. Assentava nisso toda a sua ordem social. A ânsia de honra era neles simplesmente insaciável, sem que isso seja característica moral peculiar aos indivíduos como tais. Era natural e indiscutível que os heróis maiores e príncipes mais poderosos exigissem uma honra cada vez mais alta.” (p.31). Para nós, em pleno século XXI é difícil imaginar que a ética assentasse numa exterioridade absoluta. Por outro lado, a cultura cristã em que vivemos embrenhados, sejamos ou não crentes, considera a aspiração à honra como vaidade, sendo, portanto, pecaminosa. Por outro lado, o amor à pátria que hoje em dia vigora poderia ter ajudado a pacificar Aquiles, mas este sentimento era-lhes desconhecido. Aos olhos dos Aqueus, Aquiles abandona-os para salvar a sua honra, e essa era a única forma de conduta possível depois de Agamemnon o ter ultrajado.
É somente a partir de Sócrates que se inicia um processo de interiorização da ética. É ele quem provoca uma incontornável mudança no conceito de arete ― do reconhecimento exterior para a consciência interior ― quando responde deste modo a quem o acusa: “Não te envergonhas por te preocupares só com as riquezas e com a forma de as tornares maiores, e de só pensares na fama e na honra; e, por outro lado, não cuidas nem te preocupas com a sabedoria, nem com a verdade, nem com a forma de tornar a tua alma o melhor possível?” (Platão, Apologia de Sócrates) Ele é o primeiro a conceber a conduta moral como algo que é interior ao indivíduo, muito para além de uma submissão exterior à lei. O cuidado da alma é para ele a missão suprema do homem. Exerce-se através da procura incansável da verdade, por um lado, do autodomínio, por outro. Só assim se conseguiria alcançar a eudaimonia ― conceito socrático de felicidade ― uma harmonia do ser com a ordem natural do universo que assenta no domínio de si próprio de acordo com a lei que descobriu ao examinar a sua alma.
Café Filosófico: Ainda sobre a alma | 26 Jan 2023 | 18:30 | AP Maria Nova Launge Hotel, Tavira
Inscrições: [email protected]
Contribuição: 5€
*A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa