Hoje em dia chamamos-lhe “detox”, com a mania portuguesa de utilizar estrangeirismos, que tem vindo a erosionar o nosso idioma tão rico. Estes processos de desintoxicação vêm publicitados nas revistas da moda, sobretudo no verão, pois a limpeza intestinal é propícia à perda de alguns quilos. A mais antiga purga de que tenho conhecimento é o Panchakarma da medicina Ayurvédica. Trata-se de cinco diversos tratamentos (pancha = cinco) com óleos específicos, incluindo diferentes tipos de massagem de corpo inteiro, que têm como objectivo dirigir todas as toxinas para o intestino. O processo completo desenvolve-se ao longo de vinte e um dias e culmina num defecar sucessivo até toda a matéria fecal ser expulsa do organismo.
O amável leitor estará neste momento a interrogar-se sobre o que tem esta conversa escatológica que ver com a filosofia… Tem muito mais do que, à partida, poderíamos supor… Garanto!
Na antiguidade clássica, o filósofo Sócrates recorria frequentemente a metáforas da medicina para falar sobre processos psíquicos. Aliás, considerava-se um médico da alma, afirmando que esta não pode beneficiar do ensino sem antes rejeitar as opiniões que a impedem de aprender. Primeiro é preciso averiguar o que em verdade se sabe. Isto consegue-se quando outros refutam as opiniões e os pseudo-saberes defendidos. Por conseguinte, caro leitor, o método de conhecimento socrático começa, precisamente, com uma purga das pseudo-compreensões.
Na prática, como é que esta purga mental funciona?
É frequente, quando insisto numa pergunta, deparar-me com a seguinte resposta: “Eu sei, mas não sei explicar…” Porém, a incapacidade de fornecer uma explicação aponta, justamente, para o contrário: pensava-se que se sabia e, afinal, não se sabia. Está-se perante uma pseudo-compreensão. Os gregos da Antiguidade Clássica chamavam-lhe doxa: falar num registo de meras opiniões, sem esforço de verificação ou fundamento. A doxa é a mera conversa de café. No Café Filosófico, pelo contrário, tentamos extirpar a doxa, combatemos as pseudo-compreensões, essas ignorâncias disfarçadas de conhecimento.
Contudo, descobrir que não se sabe é, para a maioria das pessoas, muito desagradável. (As purgas não são propriamente prazenteiras). Quando não conseguimos explicar, mas continuamos a achar que sabemos, resistimos a aceitar a nossa ignorância porque ela nos faz sentir mal. Não saber é humilhante.
Sócrates ao conversar com os seus concidadãos não se coibia de os interrogar. Por exemplo, no seu entender, não se poderia falar de uma conduta justa, sábia ou boa, sem primeiro averiguar em que consistiam a justiça, a sabedoria ou o bem. Ora, encontrando-se o interlocutor sempre a jusante da problematização destes conceitos, utilizando-os sem nunca ter parado a pensar sobre eles, era apanhado desprevenido e o chão fugia-lhe debaixo dos pés. O desgraçado já não tinha a que se agarrar. Era preciso encontrar outro chão. Tinha a ilusão de pisar terra firme e, afinal, estava a cair.
É com esta sensação de urgência que se inicia o segundo momento do método socrático: a pesquisa. Sócrates exibia a sua douta ignorância: “Só sei que nada sei”. Considerava-se estéril em sabedoria, portanto, não podia fornecer ao seu interlocutor algum chão firme porque não o possuía. Regozijava-se em que procurassem juntos: através da dúvida metódica iam-se peneirando os supostos saberes, e detectando as pseudo-compreensões tácitas que se defendiam como se fossem verdades.
Sócrates acreditava veementemente na possibilidade do conhecimento. Contudo, fazia-a depender da autenticidade da purga: os restos de ideias incompletas e/ou erróneas que enchem a cabeça da maioria de nós, tinham de ser excretados antes de se iniciar a busca do verdadeiro saber.
O terceiro e último momento do método socrático consistia no exercício da arte da maiêutica. A palavra provém de mãe. A mãe de Sócrates era parteira e o filho seguiu-lhe as pisadas, embora de forma distinta: a maiêutica cuida das almas e não dos corpos. O progresso daqueles que se submetiam ao método socrático advinha de que este lhes permitia recordar os conhecimentos que possuíam mas tinham esquecido. Para Sócrates, conhecer consistia em recordar, assim dita a Teoria da reminiscência, sobre a qual falaremos noutro momento.
Muito poucos foram aqueles que permaneceram junto de Sócrates tempo suficiente para chegar ao segundo ou terceiro patamar do seu método. A purga afugentava. Sócrates ganhou a alcunha de “moscardo”, por esta capacidade de ferrar um aguilhão que expunha a ignorância do interlocutor.
Que dizer dos que ficaram junto de Sócrates, à mercê da sua ferroada? Seriam masoquistas?
Era no ginásio, onde se dedicavam ao cultivo do corpo, que os atenienses também se encontravam para conversar. “Sócrates é um cidadão simples, a quem todos conhecem. A sua acção passa quase despercebida; a conversa com ele agarra-se quase espontaneamente, e como sem querer, a qualquer tema de ocasião.” (Werner Jaeger, Paideia) A sua agudeza intelectual, ao qual nenhuma incongruência escapava, exercia um fascínio enorme sobre a juventude. O próprio Sócrates o reconhece: “os jovens que me seguem espontaneamente (…) têm prazer ao ouvir-me submeter a exame os homens, e muitas vezes imitam-me, submetendo eles próprios os outros a exame e, por conseguinte, encontram, creio eu, grande número de homens que julgam saber algo, mas que sabem pouco ou nada. A partir deste momento, aqueles que eles examinam, irritam-se não contra eles, mas contra mim, e dizem que existe um certo Sócrates que é um miserável e que corrompe os jovens.” (Platão, Apologia de Sócrates) Para a grande maioria o desconforto que causavam os seus aguilhões era de tal modo grande que Sócrates acabou, como se sabe, condenado à morte pelos seus concidadãos, acusado de corromper essa mesma juventude ática que se reunia em seu torno.
Em tribunal, tendo-lhe sido dada a oportunidade de pedir desculpa pelo seu comportamento e rogar absolvição, Sócrates respondeu deste modo: “(…) enquanto tiver um sopro de vida e for capaz, não deixarei de filosofar e de vos exortar e de vos interpelar (…)”.
Passaram vinte e cinco séculos desde a histórica morte de Sócrates. Com a devida autorização, permito-me publicar a reacção que teve um dos participantes do Café Filosófico a um dos meus aguilhões: “A pergunta que me fizeste é pertinente. Depois de uma inesperada perplexidade, dou-me conta da minha tremenda ignorância e sinto-me feliz (quem diz isto não deve estar muito bem da cabeça!). Para mim, ter consciência da minha ignorância é humanamente maravilhoso! Estimula-me ter a oportunidade, e o desejo, de poder, e querer, saber mais! Conhecer é mesmo isso: desvelar, trazer à luz, clarificar.”
Existe, portanto, uma outra direcção possível de reacção quando nos ferram o aguilhão que purga. Excretar ignorância parece, pelo menos para alguns de nós, incrementar felicidade. Ficamos mais próximos do conhecimento, mesmo quando este não aumenta em verdade, mas diminui em erros. O sentir-se obrigado a procurar, que a descoberta da ignorância induz, pode ser vivido de forma muito positiva. A ferroada é estimulante! Faz-nos mover montanhas porque queremos mesmo saber. E essa vontade é uma energização do ânimo e um enorme prazer.
Atrevo-me a pensar, quando Sócrates afirmava que uma vida bem vivida implica reflexão, que esta frase pode ser entendida em pelo menos dois sentidos: primeiro, o ético de vida boa, virtuosa; segundo, o de prazer inerente à reflexão. Deste segundo, não sei por que razão, mal se ouve falar! É aqui, no Café Filosófico, que ele se cultiva.
Café Filosófico | 16 Fev 2023 | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel Tavira
Contribuição: 5€
Inscrições: mailto:[email protected]
*A autora não escreve segundo o acordo ortográfico
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa