Chegará em breve o 8 de Março ― Dia Internacional da Mulher ― criado para que celebremos o feminino, nos congratulemos com os progressos feitos no sentido da igualdade de direitos mas, sobretudo, nos consciencializemos do muito que ainda há a fazer para acabar com a discriminação que grassa, sobretudo em países não democráticos.
Infelizmente, este é normalmente o dia em que mais me envergonho das mulheres. Saem em bandos pela noite, exibindo a suposta feminilidade de forma grotesca, como se de Carnaval se tratasse. Pisam e falam ruidosas e estapafúrdias, como se a liberdade fosse sinónimo de descontrolo e falta de gosto.
Pergunto-me: será que tanto estardalhaço esconde algo mais profundo? Tratar-se-á de gritos de insatisfação por vidas esvaziadas de sentido? Será este o dia catártico, de uma forjada exibição de força que contrabalança um ano inteiro de frustrações e desalento? Se assim for, a noite de desvario servirá apenas para perpetuar tristes existências alienadas. Depois, estas supostas mulheres livres, provavelmente regressam às suas rotinas quem sabe se de obediência ou até de sujeição.
Devido ao comportamento descontrolado que exibem nesta noite estas mulheres são apelidadas de “selvagens”. O termo tem aqui um forte sentido pejorativo. Em Mulheres que correm com Lobos, a psicóloga americana de origem mexicana Clarissa Pinkola Estés clarifica o sentido original desta palavra que significa “viver uma vida natural na qual a criatura tem integridade inata e barreiras saudáveis”. Indo ainda mais longe, Clarissa afirma que o binómio mulher selvagem cria uma metáfora originária que faz com que as mulheres recordem quem são e o que são. Aponta para uma força fundamental sem a qual as mulheres não conseguem viver: a energia da Mulher Loba. Clarissa afirma que, não importa sob que cultura é que uma mulher vive, ela percebe o binómio mulher selvagem intuitivamente. “Quando as mulheres ouvem estas palavras, uma memória muito muito antiga é agitada e trazida de volta à vida. É a memória do nosso absoluto, inegável e irrevogável parentesco com o feminino selvagem, um relacionamento que pode ter ficado fantasmagórico por ter sido negligenciado, enterrado por demasiada domesticação, drenado pela cultura circundante ou já não compreendido. Podemos ter esquecido os seus nomes, podemos não responder quando ela chama o nosso, mas nos nossos ossos conhecemo-la, ansiamos por ela; sabemos que ela [a Mulher Loba] nos pertence e nós a ela.”
A justaposição da mulher com este animal em particular deve-se ao facto de, no seu estado saudável, partilharem certas características psíquicas: “sentidos aguçados, espírito lúdico, e uma elevada capacidade de devoção.”
Hélène Grimaud, a talentosa pianista francesa que em 1999 criou o Wolf Conservation Center em South Salem, (Nova York, E.UA.) para a preservação destes animais, considera que talvez seja devido a esta afinidade que lobos e mulheres têm sido caçados e perseguidos, inspirando terror quanto mais aptos e inteligentes. No seu livro Variations Sauvages pode ler-se: “uma mesma violência predadora, vinda de um mal entendido, exerce-se contra os lobos e contra as mulheres. Sereias ou feiticeiras, elas foram punidas devido à sua relação primitiva, selvagem, essencial para com a natureza. (…) Algumas foram queimadas, outras banidas. Outras ainda, quando a sua sombra corre sob a lua, estendem-se e uivam como uma loba. São as que riem e amam sem constrangimentos, dão à luz e criam, alegram-se com suas formas e com o sangue quente que escapa dos seus corpos; e conhecem instintivamente as virtudes de cada erva e o veneno dos frutos.”
Segundo Clarissa, a vida selvagem e a mulher selvagem estão ambas em vias de extinção. Esta pode acontecer pela aniquilação completa do indivíduo ou pela sua manutenção no mundo, mas com uma existência horrivelmente reduzida, devido à perda de contacto com o nosso instinto e com a nossa intuição. Quando isto acontece entramos numa existência semi-destruída e os poderes que são naturais ao feminino não conseguem desenvolver-se. A mulher foi domesticada. Clarissa esclarece: “Quando se lhe corta a fonte natural a mulher é higienizada, e os seus instintos e ciclos naturais são perdidos, subsumidos pela cultura, pelo intelecto, ou pelo ego. A separação da natureza selvagem faz com que a personalidade da mulher se torne magra, espectral.”
Eis aqui alguns sintomas desta perda de conexão com a nossa natureza selvagem:
– Sentir-se seca, cansada, frágil, deprimida, confusa, amordaçada;
– Sentir-se amedrontada, fraca, sem inspiração, sem energia, de alma vazia, sem propósito, envergonhada, volátil, presa, sem criatividade, comprimida, enlouquecida;
– Sentir-se sem poder, em dúvida crónica, trémula, bloqueada, incapaz de seguir em frente;
– Perda da libido
– Más escolhas: companheiro, trabalho ou amizades que sugam a vida;
– Incapacidade para estabelecer limites
– Medo de morder de volta quando nada mais há a fazer, medo de enfrentar, medo de se fazer ouvir ou de se manifestar contra;
Pelo contrário, uma mulher saudável é bastante parecida com uma loba: robusta, transborda de vitalidade, está consciente do seu território e defende-o, é criativa e apaixonada. Eis aqui alguns sintomas da vivência em integridade do selvagem feminino:
– Habitar o seu corpo com segurança e orgulho independentemente dos dons ou limitações que este tenha;
– Falar e actuar em sua defesa quando necessário;
– Estar consciente e alerta;
– Mergulhar nos poderes inatos de sensibilidade e intuição;
– Entrar nos seus próprios círculos, encontrar onde se pertence;
– Erguer-se com dignidade;
Clarissa garante que, se tendo perdido esta conexão a reencontramos de novo, vamos lutar para a preservar porque “com ela a criatividade floresce; os relacionamentos ganham significado, profundidade e saúde; os ciclos de sexualidade, criatividade, trabalho e lazer são reestabelecidos; deixamos de ser um alvo para os predadores; temos um direito igual, sob as leis da natureza, para crescer e prosperar. Agora o cansaço do fim do dia provém de trabalho e esforço satisfatório e não de estar calada num trabalho ou num relacionamento tacanho. Sabemos instintivamente quando as coisas devem morrer e quando as coisas precisam de viver; sabemos quando ir embora, sabemos quando ficar.”
Gostava de terminar este artigo com uma história real que Hélène Grimaud relata no seu aqui já citado livro Variations Sauvages. Certa noite, em redor das duas da manhã, a pianista não conseguia conciliar o sono e resolveu ir dar uma volta com o seu cão. Afastou-se da zona residencial onde residia, na Flórida, adentrando-se numa zona de bosque. Foi então que se deparou com: “uma silhueta de um cão, porém, desde o primeiro olhar e apesar da noite, sabíamos instantaneamente que não se tratava de um cão. O animal tinha um caminhar indescritível, tenso, furtivo, como se avançasse dentro de um túnel de uma altura insuficiente. Os seus olhos tinham uma luz quase sobrenatural; transmitiam uma luz surda, violeta e selvagem. Bizarramente, cada um dos seus passos extinguia os sons à sua volta: não mais se ouviam os pássaros da noite, nem algum rastejar ou farfalhar de asas, apenas um silêncio tenso e apertado. Ela olhou para mim e um arrepio percorreu-me ― nem medo nem angustia, simplesmente um arrepio.” Pouco depois, a loba aproxima-se da sua mão e roça as omoplatas contra a sua palma, Hélène recorda: “Senti uma faísca deslumbrante, uma descarga por todo meu corpo, um contacto único que irradiava todo meu braço, o meu peito, e me enchia de doçura. De doçura apenas? Sim, naquilo que há de mais imperioso e que despertou em mim um canto misterioso, o chamamento de uma força desconhecida e primordial.”
E quem lê, também sente este chamamento?
Mulheres, não nos deixemos domesticar! Vamos honrar e nutrir a loba que há em nós.
Café Filosófico | 16 Mar |18:30-20:00 | AP Maria Nova Lounge Hotel Tavira
Contribuição: 5€
Inscrições: mailto:[email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
* Doutorada em Filosofia Contemporânea;
Investigadora da Universidade Nova de Lisboa