Um dos problemas com que quase todos lidamos é a tendência para acumular. Roupas, sapatos, malas, deixam os guarda-fatos a abarrotar. Fotografias e os seus negativos, mais os álbuns que nunca completámos, ganham pó em caixas e caixinhas, gavetas e gavinhas, juntamente com as armações de óculos que já nos esquecemos que um dia usámos, facturas que ficaram a apodrecer, resmas de fotocópias dos tempos de faculdade, cadernos e dossiers, tudo numa amálgama poeirenta prestes a desabar-nos em cima se lhe tocamos. Champô e cremes, frascos de perfume quase vazios, pentes, escovas e produtos que já nem se reconhecem o que são, em embalagens que gretaram, derramam generosamente o seu conteúdo por todos os objectos que as circundam, nos armários e gavetas em que hibernavam há décadas.
Quando fazemos mudanças, além de tudo aquilo que usamos quotidianamente, e que não é pouco, aparece todo este lastre. É como quando se descongela o frigorífico e aparecem, no melhor dos casos, as irredutíveis migalhas de pão. Nos piores casos emergem das profundezas do gelo os restos de peixe e de outras comidas já inidentificáveis que agora mostram a sua pestilência sem nenhum pudor.
Porém, nem sempre uma mudança significa o desejável aumento de espaço e limpeza. Com frequência, as pessoas que procuram casa querem uma garagem, não para estacionar os carros, mas para lá colocarem tudo o que não usam, mas carregam consigo: os móveis de família e o manancial de coisas que já referi acima.
Vive-se atulhado! E assim é como o peso e o espaço do passado não deixam viver a leveza do presente nem a abertura ao futuro.
Com um telemóvel em punho, disparamos em direcção a tudo o que vemos. A fotografia digital é perdulária. Longe vão os tempos em que tínhamos de escolher muito bem quando carregar no botão pois os rolos permitiam apenas vinte e quatro ou, quando muito, trinta e seis fotografias. Lembra-se disso, claro leitor? E da surpresa que era ir buscar as fotografias reveladas e ver como tinham saído?
Agora tudo é rápido, instantâneo. Carregar no botão não custa nada. Vemos a fotografia no momento. Nunca tiramos apenas uma, disparamos várias vezes para depois escolher a melhor. Mas o desejável processo de selecção é constantemente protelado. E, uma vez mais, acumulamos!
Tempos ouve em que os viajantes, deslocando-se a pé ou a cavalo, tudo observavam e ouviam, tudo memorizavam, para depois relatar na sua terra as memórias desses destinos distantes. Agora a tecnologia baniu da nossa vida Mnemósine, a deusa grega da memória. Agora, em vez de levarmos as memórias na nossa mente, carregamos connosco o registo de tudo o que vivemos, e essa carga é esmagadora.
Menemósine era filha de Urano, o Céu, e de Gaia, a Terra. Certo dia o seu sobrinho Zeus, disfarçado de pastor, seduziu-a e passou com ela nove noites nas montanhas Pieria. Desta união nasceram as nove musas: Calíope, Erato, Melpômene e Tália, musas da poesia épica, da poesia romântica, da tragédia e da comédia, respectivamente; Clio, musa da história; Polímnia musa dos hinos e Euterpe da música; Terpsichore musa da dança e, finalmente, Urânia, musa da astronomia. Daqui se depreende que para os gregos a memória era uma condição sine qua non da criação artística. Contudo, isso não significa que fosse condição suficiente. Para que a criatividade aconteça é preciso espaço. Espaço mental, espaço anímico, mas também espaço físico que cria boas condições para que os dois outros aconteçam. Numa vida atulhada a criatividade torna-se escassa.
Existe ainda um lado perverso da acumulação: o que se fica a saber quando se limpa o entulho de outrem. Num voyeurismo involuntário ficamos a conhecer todos os podres dessa pessoa, acedemos a tudo aquilo que nem o próprio gostaria de enfrentar. Temos acesso àquilo que é privado e que nunca deveria ter sido tornado público.
Que fazer então? Vou partilhar aqui algumas estratégias para não acumular:
1. Tornar-se imune às pechinchas, aos saldos ou às oportunidades. Comprar-se apenas aquilo de que realmente necessita.
2. Regra do entra 1 sai 1, entram 2 saem 2, e assim sucessivamente. Quer isto dizer que se compra duas t-shirts é porque precisa de substituir outras duas, seja porque já estão velhas, ou porque deixaram de servir, ou porque já não gosta delas. Se entra um par de sandálias, sai um par de sandálias, e assim com qualquer coisa que se adquira.
3. Oferecer à caridade. Dar é uma magnífica solução. Tudo aquilo que já não precisamos pode ser de grande utilidade a outrem, desde que esteja em boas condições. Portanto, é necessário criar a disciplina de se desapegar e dar.
Existem várias instituições às quais podemos doar. Para roupas, calçado, loiças, livros, etc. Costumo contactar a Associação de Caridade Mãos de Ajuda situada na Av. Dr. Eduardo Mansinho 13A, muito perto dos Correios da Porta Nova em Tavira. É muito fácil, basta contactar a associação e entregar-lhes aquilo de que nos queremos desfazer. Os voluntários da associação encarregam-se de seleccionar os artigos e de os colocar à venda na sua loja, que está muito bem apresentada e limpa. O dinheiro proveniente destas vendas já ajudou muitas famílias carenciadas a adquirirem bens essenciais como um frigorífico ou um fogão.
Para itens maiores como mobílias costumo contactar a ACT, situada na R. Dr. Miguel Bombarda 155, perto da estação de comboio de Tavira. Os próprios voluntários vêm buscar as mobílias e encarregam-se de as colocar na loja.
Na verdade, é bastante simples: trata-se de deixar de acumular, mudar e… Dar!
Ou talvez não seja assim tão simples pois na base da capacidade de se desfazer das coisas está o desapego. Pouco falamos dele na sociedade ocidental, que é consumista, e favorece a acumulação. Porém, o desapego é considerado uma virtude sábia que é transversal tanto à filosofia como à religião oriental e ocidental. No Budismo, no Cristianismo, no Taoísmo, no Estoicismo, todos proclamam o desapego. A base do desapego é, por um lado, o conhecimento da impermanência e, por outro, a apreciação do presente. Se não apenas percebemos, mas sentimos que tudo é transitório damo-nos conta de que não vale de nada aferrar-nos ao que quer que seja, pois tudo desaparecerá, inexoravelmente. Se a preocupação de guardar o que se está a viver para memória futura se desvanece, a energia para viver o momento presente aumenta exponencialmente. Imagine voltar a ver o mundo como ele é, com o horizonte aberto, em vez de ser pela pequena esquadria do telemóvel. Toda a energia disponível para a vivência do momento presente, sem uma réstia de pensamento para tornar esse instante instagramável. O desejo de algo mais, a ambição de se perdurar cessam. De repente, esse momento presente, banhado na alegria de se estar em vida, nessa gratidão de ter acesso à presença do mundo e de si próprio, passa a ser vivido em plenitude.
Cafés Filosóficos: A memória e o desapego
12.08.2024 at 6.30 pm in English
13.08.2024 às 18.30 em Português
Inscrições: [email protected]
*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia
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