A Gravidade das Circunstâncias, de Marianne Fritz, com tradução de Paulo Rêgo, agora publicado pela Cavalo de Ferro, representa o relançamento de uma autora de culto e de um romance fundamental que marcou a literatura austríaca do séc. XX.
A ação situa-se nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, período em que a Europa está em ruínas: «As cidades agora têm todas o mesmo aspecto. Um monte de escombros é um monte de escombros, esteja-se lá onde se estiver.” (p. 10)
Narra-se a história de Berta Faust, uma jovem mulher traumatizada, cheia de medos e receios, que perdeu o marido, o primeiro-cabo Rudolf, na guerra e se esforça por se resignar à vida doméstica e à maternidade, a braços com a educação de duas crianças, Rudolf e Berta. Depois de anos de luta, a tímida e distante Berta Faust, sempre com a cabeça algures a cismar e a duvidar, encontra-se internada na enfermaria número 66. Narra-se, sobretudo, como se a história de Berta fosse a sua refração, a vida de casal da sua amiga Wilhelmine e do seu ainda marido Wilhelm. Não será aliás por acaso que a 13 de janeiro de 1963 (número já de si aziago) se celebra o seu terceiro aniversário de casamento, coincidindo ainda com o quadragésimo aniversário de Berta.
Wilhelmine, mulher de feitio difícil oposto ao de Berta, gosta de queimar a sua energia “nas suas minuciosas disputas conjugais” (p. 11), abafando assim o marido, um chaffeur cujo trabalho consiste sobretudo em saber fazer-se invisível, mesmo quando sorri discretamente, “um indivíduo sem importância, um zé-ninguém, sem rosto, sem cor” (p. 30).
A Gravidade das Circunstâncias é um romance psicológico, entre a tragédia e a sátira, por vezes com laivos negros ou surreais, talvez reflexo desse estranhamento de um mundo em reconstrução, e do horror existencial, de como “as patorras da vida” deixam marcas, modelando qualquer rosto, qualquer vida. Um livro que tem mesmo um pendor pessimista, em declarações sonantes como “A vida é uma esperança e a esperança é uma chaga” (p. 34).
A prosa jorra e arrasta o leitor numa torrente, por vezes circular e recorrente. Adivinha-se uma tragédia, sensação tornada ainda mais iminente pelo carácter fragmentado e temporalmente desordenado do livro, que ora nos faz perceber que algo terrível acontece, ora recua.
O próprio livro reparte-se em pequenas secções, que se assemelham a breves capítulos, devidamente intitulados, cujos títulos são retomados na narrativa.
A Gravidade das Circunstâncias foi a fulgurante obra de estreia de Marianne Fritz, distinguida, ainda em manuscrito, com o prestigiado Prémio Robert Walser. Fritz ganhou o Prémio Franz Kafka em 2001.
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