Os pagamentos de serviços feitos através dos terminais Multibanco (conhecidos como ATM) não estão a cumprir as novas regras de emissão de faturas, que obrigam à introdução de um código QR desde 1 de janeiro. A SIBS, que gere o Multibanco, diz que está a tentar resolver a falha, mas já houve empresas que, para evitarem multas, suspenderam a possibilidade de compras no Multibanco, dificultando a vida aos clientes.
Há um conjunto alargado de serviços que podem ser pagos pelo Multibanco. É o caso dos bilhetes e passes de transportes de passageiros e das portagens, de faturas de telecomunicações ou de assinaturas de programas televisivos. Como as faturas não foram adaptadas ao tal código QR, houve empresas que, à cautela, para evitarem multas, deixaram desde o início do ano de vender bilhetes. Outras mantiveram as operações, arriscando coimas do Fisco. A que se deve este problema?
Contactada pelo Expresso, a SIBS reconhece que alguns dos seus terminais não têm instalada a capacidade de imprimir os códigos QR. “A rede de caixas Multibanco é composta por mais de doze mil terminais dispersos por todo o país, de diferentes marcas e modelos, com características técnicas complexas e especificidades próprias, mas em que a capacidade de impressão de um QR Code nunca foi até esta data um requisito, não tendo alguns dos equipamentos instalados essa capacidade”, explica a SIBS.
A empresa adianta que “está a trabalhar com a Autoridade Tributária e o Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e dos Assuntos Fiscais, desde há vários meses, na solução final”, de forma a cumprir a obrigatoriedade. E lembra que “atualmente as caixas Multibanco permitem a emissão de faturas, através de um sistema da SIBS, certificado pela Autoridade Tributária, podendo a fatura ser impressa pelo utilizador, com toda a informação necessária e exigida, com exceção da representação gráfica do código QR”.
A empresa não explica, contudo, os motivos do seu atraso. Estas regras são conhecidas desde o início de 2019 e, não tivessem ocorrido sucessivos adiamentos por parte do Governo, deviam ter entrado em vigor em 2020.
Finanças não confirmam coimas – mas lembram que a lei tem três anos
O Expresso contactou o Ministério das Finanças sobre o assunto, perguntando nomeadamente se já tinha havido lugar à aplicação de alguma coima. O gabinete não esclarece se aplicará coimas – tanto às empresas que não suspenderam o serviço, como à própria SIBS – mas deixa implícito que os argumentos usados pela organização liderada por Madalena Cascais não convencem.
É que “a obrigatoriedade da inserção do QR Code nas faturas emitidas foi prevista no Decreto-Lei n.º 28/2019, de 15 de fevereiro. Desde então passaram 3 anos em que Governo e Autoridade Tributária e Aduaneira trabalharam em conjunto com os operadores para operacionalizar esta medida, considerando a mais-valia que se lhe reconhece”.
O Ministério das Finanças adiantou também que teve em conta as exigências técnicas associadas a esta medida e os impactos da situação pandémica nos operadores e por esse motivo atrasou a entrada em vigor da obrigatoriedade, que estava prevista para 1 de janeiro de 2021. E deixou claro que a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) esteve a apoiar no ano passado os operadores que tinham dúvidas ou sugestões relacionadas com esta medida. “Por diversas vezes, a AT interagiu diretamente com operadores no sentido de prestar o auxílio técnico possível, num espírito de disponibilidade e de colaboração”.
Ao mesmo tempo é recordado que “a AT se encontra sujeita ao dever de confidencialidade” e por isso não pode “revelar situações/ ações tributárias concretas sobre sujeitos passivos, nem se pode pronunciar sobre relações tributárias especificas no âmbito da sua atuação”. E que há penalizações para os emitentes que não cumprirem a introdução dos códigos nas faturas, por estarem a “utilizar um programa informático de faturação que não observa os requisitos legalmente exigidos” e para os produtores dos programas, uma vez que transacionaram “um programa informático de faturação que não observa os requisitos lealmente exigidos”.
CP avisou a SIBS e suspendeu vendas
As regras preveem a aplicação de coimas até 18.750 euros a quem emita as faturas sem cumprir a lei, bem como aos responsáveis pelos programas de faturação. A questão que se coloca é se o Governo terá em conta esta explicação de dificuldade técnica da SIBS e ‘fechará os olhos’ ao incumprimento ou se, pelo contrário, vai avançar com coimas às entidades que não incluírem o código QR nas faturas. É que há serviços que continuam a ser pagos com a fatura simplificada sem o código – como por exemplo os passes combinados de transportes públicos – mas também há empresas que suspenderam o pagamento por Multibanco de forma a não caírem numa situação de incumprimento.
É o caso da CP, que desde o início do ano não permite a compra de bilhetes de viagens de comboio pelo Multibanco. A empresa comunicou essa situação aos seus clientes através da sua página na Internet, onde referiu que “dada a impossibilidade de impressão do QR Code, de acordo com a obrigatoriedade legal prevista na portaria 195/2020, de 13 de agosto, nas faturas e documentos fiscalmente relevantes emitidos nos terminais ATM, se vê obrigada a suspender a venda no Multibanco de títulos de transporte CP para os serviços Alfa Pendular e Intercidades, a partir do dia 01/01/2022”.
Contactada pelo Expresso, a empresa explica que tentou resolver o problema junto da SIBS atendendo à obrigatoriedade introduzida pela portaria: “Ao longo dos anos de 2020 e 2021, a CP procurou obter definição e esclarecimentos sobre o processo de implementação desta obrigatoriedade. Não estando, até à data, implementada uma solução final que assegure o cumprimento dos requisitos legalmente exigidos na emissão de faturas e documentos equivalentes, e porque a CP entendeu que se deveria assegurar, sem exceção, o enquadramento legal em causa, foi suspenso o serviço de venda da CP para os ATM até que este permita o cumprimento integral da portaria. Esta iniciativa foi formalizada pela CP junto da SIBS”.
A CP diz também que “envidou todos os esforços para preparar os seus canais de venda para o cumprimento legal da referida portaria, nomeadamente ajustando e desenvolvendo todos os canais internos para responder à obrigação que resulta da mesma, tendo antecipadamente dado resposta em todos os seus canais, nomeadamente bilheteiras, máquinas de venda automática, canais digitais e equipamento de venda em trânsito. Nesta fase, ficou pendente de definição e resposta a venda efetuada na rede ATM, sistema gerido pela SIBS, que apesar de ser um canal externo, emite faturação CP, e em nome da CP”.
Há mais empresas a cancelar? SIBS invoca dever de confidencialidade
Mas, além da CP, há outras entidades que vendem serviços através do Multibanco. Além do pagamento de títulos de transportes e de portagens (Via Verde, Via Card, Viva Go), é possível pagar através do Multibanco diversos serviços de telefone e telecomunicações, assim como vouchers da Playstation, Netflix, Spotify, Amazon, Nintendo, Sports, App Store e ITunes. Também os jogos da Santa Casa podem ser pagos por esta via.
O Expresso perguntou à SIBS se outras empresas cancelaram essa forma de pagamento, tal como fez a CP, mas a empresa respondeu que “por questões de confidencialidade não divulga as condições contratuais com os seus clientes”. O mesmo argumento usado pela Autoridade Tributária para não revelar se aplicou ou aplicará coimas aos diversos intervenientes, como prevê o Regime Geral de Infrações Tributárias.
DO NÚMERO DE CONTRIBUINTE AO QR CODE
Para que serve o QR Code? Para pouco, por agora
O projeto para obrigar todas as faturas a introduzir um QR Code leva mais de quatro anos, e tem vários objetivos: simplificar a vida às empresas e aos seus contabilistas, reduzir as emissões de papel nas faturas, e combater a evasão fiscal através da subdeclaração de rendimentos. Contudo, o plano foi sendo sucessivamente adiado, em parte devido à pandemia. Se, desta vez, os novos prazos forem cumpridos, em 2023 as regras produzirão plenos efeitos. E que efeitos são esses?
De janeiro do próximo ano em diante, todas as entidades que emitam faturas vão ser obrigadas a comunicar ao Fisco as séries de faturação que estão a usar em cada momento e esta comunicação vai gerar automaticamente um código único de documento (ACTUD). Obrigar as empresas a comunicar as séries de faturação que estão a usar serve para evitar que tenham sistemas paralelos – um sistema para emitir faturas que são para comunicar ao Fisco, e outro sistema que é só para entregar o papel ao consumidor, mas que não segue para as Finanças, subdeclarando vendas, lucros, e impostos a pagar.
Quando isto for implementado (supostamente no início de 2023), o tal código único de documento (ACTUD) acompanhará o QR Code que constará das faturas finais. A partir dessa altura, os consumidores já não precisarão de dar o número de contribuinte ao comerciante. Querendo que a sua despesa seja considerada no e-fatura (para benefícios fiscais ou para ficarem elegíveis aos concursos da “fatura da sorte”) basta-lhes copiar o QR Code e enviá-lo diretamente para as Finanças.
Privacidade, rapidez, combate à fraude: as vantagens futuras
Quais as vantagens deste sistema face ao atual? Primeiro, mais privacidade: o consumidor não precisa de dar o número de contribuinte aos comerciantes, que, deste modo, não precisam de ficar a saber o que cada cliente consome.
Segundo, o comerciante não sabe se cada um dos seus clientes vai ou não enviar a fatura para o Fisco. Hoje em dia, quando um consumidor introduz o NIF, pressiona o comerciante a não esconder a venda da Autoridade Tributária. De futuro, o comerciante ficará na dúvida sobre se os dados seguiram para as Finanças, sendo pressionado a fugir o menos possível aos impostos.
Terceiro, rapidez. Hoje em dia, pode ser preciso esperar um mês até que uma compra que fizemos apareça no e-fatura (porque os comerciantes estão obrigados a fazer comunicações até ao fim de cada mês). De futuro, tirando foto do QR Code, a comunicação para o Portal das Finanças é praticamente automática.
Este ano, contudo, quase tudo fica como estava, pelo menos para os consumidores. As empresas passaram a ter de introduzir um QR Code mas, para as faturas chegarem às Finanças, continua a ser necessário introduzir o número de contribuinte.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL