Músculo flexor da anca. É a esta pequena parte da sua irrepreensível anatomia que Cristiano Ronaldo deve agradecer por não ter participado no banho termal a que o Manchester United foi submetido pelos vizinhos barulhentos. Se não fosse o músculo flexor da anca, Ronaldo não só teria feito companhia aos seus desorientados companheiros, como muito provavelmente seria o símbolo mais conspícuo dessa desorientação e sobre ele se abateriam as críticas que, nos últimos anos se tornaram habituais: CR7 como causa de todos os males das equipas por onde passa.
Assim, graças aos músculos que tanto trabalha e a que tanto deve, o jogador pôde pelo menos escapar a mais uma humilhação às mãos dos rivais, apanhar um avião privado e voar para Portugal, onde as temperaturas amenas poderão contribuir para uma recuperação mais rápida. Mas Ronaldo nem esperou pelo jogo, nem assistiu à partida nos camarotes do Etihad e logo circularam rumores de que isso terá afetado o moral dos companheiros que, diz-se, precisam da aura do rei para se motivarem. E é esta atualmente a situação do astro português: se joga, atrapalha; se não joga, incomoda; se vai embora, desmoraliza.
Se houve qualidade que Ronaldo aprimorou a partir de determinada fase da carreira foi a de saber estar sempre no sítio certo. Dentro e fora de campo, que é como quem diz, no relvado e no clube. Mas a saída do Real Madrid, mais por despeito do que por ódio, obrigou-o a uma mudança demasiado brusca logo atenuada pela narrativa do jogador que não teme sair da “zona de conforto”, que aceita novos desafios quando os outros já estão a pendurar as botas, que quer mostrar que funciona em qualquer campeonato.
No princípio, e mesmo numa análise geral, pode-se dizer que funcionou. Porém, Turim apresentou fatura. Quando as coisas corriam bem, Ronaldo não fazia mais do que a obrigação. Quando corriam mal, era a ele que lhe davam a conta para pagar. Todos os problemas e fracassos da equipa passaram a ter um único rosto, o de Cristiano Ronaldo, aliviando assim outros atores – treinadores e colegas – das suas responsabilidades. Mesmo assim, o jogador conseguiu provar que é um todo-terreno mental, capaz de render em circunstâncias que teriam quebrado psicologicamente a maioria dos jogadores.
Porém, o certo é que não havia amor (será que alguma vez houve no Real Madrid?). A ligação com a Juventus foi como uma daquelas relações de ressaca após um longo casamento em que ambas as partes querem, acima de tudo, aproveitar o que a outra tem de melhor sem ter de gramar com as chatices. Era uma relação de conveniência entre um clube com estatuto e classe e um jogador com glamour e uma aura de vitória. Mas não era um verdadeiro amor e assim que surgiram as primeiras brechas a relação partiu-se sem grande dramatismo ou emoção. Dessa união fugaz sobrarão as memórias de algumas proezas e acrobacias e pouco mais.
E Ronaldo partiu novamente. Não em busca do amor, mas da relevância. Daí a possibilidade de ter ido para o Manchester City, que seria sempre uma notícia explosiva, onde correria o risco de juntar mais títulos à carreira, mas no qual teria de assumir um papel secundário. A opção Manchester United não lhe oferecia tantas garantias de sucesso coletivo, mas abria a porta a várias narrativas favoráveis, entre as quais o regresso triunfal a Old Trafford e a promessa messiânica de, por força da sua simples presença, conduzir o clube aos títulos que há tanto lhe escapam.
Ao fim de alguns meses, o horizonte dificilmente poderia ser mais sombrio. O United pouco ou nada joga, Ronaldo marca menos do que era habitual e os títulos estão a uma formidável distância. Como se viu ontem, o problema do United não é Ronaldo, mas é evidente que Ronaldo também tem um problema. A sua carreira enquanto lenda na estratosfera futebolística está a chegar ao fim. Não vai voltar a ganhar uma Bola de Ouro e, a continuar assim, arrisca-se a passar os últimos anos de carreira em jejum de títulos coletivos.
Seria uma pena que um voo tão brilhante, quase inigualável, terminasse com uma aterragem desastrosa. Para a evitar, Ronaldo tem de reconhecer que está na hora de aterrar. Em segurança. Com a sensação de dever mais do que cumprido. Voltando à casa em que, quase há vinte anos, iniciou a sua ascensão.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL