“Jada, eu adoro-te. Estou ansioso que saia o filme G.I. Jane 2.” Foi esta a piada que Chris Rock fez sobre a mulher de Will Smith, Jada Pinkett Smith, que rapou o cabelo por ter alopecia, e que levou o ator a subir ao palco e a agredir o humorista. Rapidamente surgiram reações de incredulidade nas redes sociais e de condenação deste episódio de violência. Mas houve também quem apontasse o dedo à piada que Chris Rock fez sobre a mulher de Will Smith.
Para os humoristas portugueses contactados pelo Expresso, há uma linha vermelha que nunca se pode ultrapassar: reagir com violência não é opção.
“Neste caso o limite não está no humor, mas no que Will Smith fez”, diz ao Expresso César Mourão. “Não podia ser ultrapassado. Vai abrir um precedente: então agora qualquer um pode subir a um palco e agredir um apresentador porque fez uma piada?” E continua, esclarecendo que, especialmente “numa das cerimónias mais vistas do mundo”, um ator como o Will Smith “devia ter outra conduta”. “Não sei se temos que gostar de todas as piadas que fazem sobre nós ou sobre familiares nossos, mas exigia-se outra conduta ao Will Smith.”
Já Ricardo Araújo Pereira (RAP) recorda que aquilo que Will Smith fez é um crime, “chama-se ‘ofensa à integridade física simples’”, “é o artigo 143º do código penal” e na cerimónia dos Óscares “não ocorreu a ninguém o que a decência mínima recomendaria: convidar o agressor a sair da sala, uma vez que tinha acabado de demonstrar que não sabe comportar-se”.
Também Cátia Domingues, que trabalha com RAP no programa “Isto é Gozar com Quem Trabalha”, sublinha que “só pode haver uma forma de olhar para um episódio em que um comediante fez uma piada e foi atacado fisicamente por tê-la feito”. Mas aponta que, se olharmos bem para as imagens, o próprio Will Smith riu-se “até bastante” da piada e só depois se levantou para agredir Chris Rock, numa tentativa de “provar que era uma pessoa muito diferente de há 47 segundos”. “Passou de uma piada gira para uma coisa de mau gosto. Nem o iogurte azeda tão rapidamente”, remata.
LIMITES PARA O HUMOR?
Será que um episódio como este nos leva a questionar se existem limites para o humor? Tanto Ricardo Araújo Pereira como Cátia Domingues e César Mourão consideram que não.
“Há um tipo agredido e está-se a fazer um exercício clássico de victim blaming”, atira Cátia Domingues. “O que é que ele fez para apanhar? É porque é um comediante? Esta discussão deixa-me verdadeiramente perplexa. Espanta-me também perceber que um bar de esquina tem regras mais rígidas do que o Dolby Theatre em Los Angeles.”
Ainda assim, e enquanto RAP e Cátia Domingues defendem que a única preocupação do comediante deve ser se as pessoas se riem ou não (uma vez que é impossível ter em consideração as sensibilidades de cada um e os critérios que determinam os temas que não devem entrar no humor), César Mourão dá uma resposta diferente.
Para ele, tudo é risível e o humorista pode fazer humor com qualquer tema, mas acredita que fazer rir não é o único objetivo e preocupação do humorista. “O mundo muda e nós temos que mudar com o mundo, já dizia Gabriel, O Pensador. E cabe a cada humorista, ator e a quem usa a voz como mensagem que tenha cuidado com o que diz e a forma como o diz.” E continua: “Tudo é risível, mas há coisas que já não são. Por exemplo, brincar com a homossexualidade só porque sim, que em 1980 tinha muita piada, deixou de ter. O mesmo com o racismo (ou com as diferentes raças) e com o machismo. Agora, quando tem graça, na dose certa, não acho mal.”
Para ele, o limite não deve estar no humor mas no bom senso. “Tem tudo a ver com o timing da piada, como é feita, qual a relação com a pessoa em causa, com a plateia naquele minuto, com o panorama do país e do mundo…” Mas os limites do bom senso dependem de cada pessoa, não podem ser determinados por uma autoridade, realça. “O Chris Rock não estava a pensar na doença da Jada, estava apenas a fazer uma piada. E o Will Smith se calhar não teve o bom senso de ouvir a piada de certa maneira e ultrapassou os limites.”
“NÃO HÁ PIADAS MAIS OU MENOS LEGÍTIMAS: HÁ PIADAS”
Ricardo Araújo Pereira, por sua vez, afirma que não é possível definir um critério para determinar quais os temas que podem entrar na esfera do humor. Analisando as propostas mais frequentes – por exemplo, “os temas muito sensíveis são ilegítimos” e “uma piada é aceitável se tiver graça” –, diz que “qualquer tema corriqueiro para uns é muito sensível para outros” (“depois de Maomé, doenças terminais e Holocausto, a alopécia não era propriamente o tema mais previsível”) e que “muita gente achou que [a piada] tinha graça”, incluindo, “curiosamente, o agressor”. “Mas quem é que define o que tem graça?”, questiona.
Também Cátia Domingues concorda que “não há piadas mais ou menos legítimas: há piadas”. E, embora reconheça que algumas podem contribuir para reforçar estereótipos, diz que cabe ao público decidir se as quer ou não ouvir. “E eu posso abominar esse tipo de humor, e posso não ver, e posso até ver e dizer que detesto e depois podem-me dizer que a minha opinião não presta e depois eu posso responder que quem não presta é a tua tia. O que não está bem, como aconteceu, é agredir.”
Para RAP, a questão não é se existem ou não limites à liberdade de expressão, “até porque estão definidos na lei”, o que tem mudado “é a noção de dano substancial”. “Há quem considere que uma piada sobre alopécia, como lhe chamou (eu confesso que tenho dúvidas de que a piada seja exatamente ‘sobre alopécia’), é uma agressão, e por isso causa um dano de tal ordem que a violência física (que, essa sim, causa dano substancial) é uma resposta adequada e proporcional”, nota. “Repare que, no discurso comum, muitas vezes as pessoas referem-se a comédia como bater. Até, para perplexidade minha, alguns humoristas. Comédia e bater são coisas muito diferentes, como me parece que ontem ficou claro.” Afirmação que Cátia Domingues subscreve.
“De resto, creio que a ideia mitológica do ‘poder’ dos humoristas faz parte do problema de hoje”, acrescenta RAP. “A comédia é tida como uma ‘agressão’ perpetrada por um ‘poderoso’.” E remata: “Parece-me que uma estrela de Hollywood que agride uma pessoa em pleno palco impunemente tem muito mais poder. Talvez devêssemos estar um pouco mais preocupados com isso.”
- Texto: Revista E do Expresso, jornal parceiro do POSTAL