101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘NOVA LISBOA’, DINO D’SANTIAGO (2018)
A ascensão de Napumoceno da Silva Araújo, comerciante grossista na cidade do Mindelo, ocorreu quando, num (raro) dia de aguaceiro, não conseguiu encontrar em toda a cidade um guarda-chuva. Tendo de se contentar com um capacete de cortiça, resolveu assim encomendar 1000 guarda-chuvas – para que pudesse servir, ainda que só estimasse vender (pelas suas contas) dez por ano, a capital da ilha de São Vicente. Por lapso, acrescentou um zero à encomenda e viu-se com o seu armazém atafulhado de 10 mil guarda-chuvas – que previu nunca conseguir vender em vida, amaldiçoando a sorte. Só que o destino recompensa (pelo menos na ficção) quem erra e começou a chover no Mindelo. Primeiro uma chuva miudinha, que a rádio se apressou a noticiar que ‘choviscava torrencialmente’, e depois um forte temporal, que durou oito dias, uma ‘chuva bonita e útil, encharcando o chão, as casas e as ruas’. Napumoceno conseguiu vender os seus 10 mil guarda-chuvas e assumiu-se, a partir de então, como um dos mais influentes comerciantes da cidade. O episódio está descrito no romance “O Testamento do Senhor Napumoceno da Silva Araújo”, de Germano Almeida, e descreve o maior dos dramas das ilhas afortunadas: a seca. A seca, tendo sido a temática central do Movimento Claridade, nos anos 30, influenciou a afirmação de uma literatura realmente cabo-verdiana (e não portuguesa ou colonial).
Para além da seca e suas consequências nefastas, a dicotomia ‘vontade de partir tendo de ficar’ / ‘vontade de ficar tendo de partir’ manifestou-se como a matéria agregadora da literatura cabo-verdiana, extensível à muito boa música que se produziu durante décadas por B. Leza, Eugénio Tavares ou Manuel de Novas.
A nova geração de emigrantes cabo-verdianos, em Portugal, na Holanda ou nos Estados Unidos, continuou, durante décadas, a expressar os lamentos das suas referências. Foi todavia uma geração de descendentes de cabo-verdianos já nascidos em Portugal que passou a criar novas temáticas, a declarar outros enredos e a resistir por um futuro composto de inconformismo.
Dino D’Santiago foi um desses luso-cabo-verdianos que, não depreciando as suas referências, se sentia exuberantemente português e a quem não bastava narrar o drama que assolara as gerações antes da sua. Sentia-se parte de um país aculturado e achava-se capaz de resumir a urbanidade musical que agora se infiltrava pelo país onde nascera e o crioulo das suas origens. Juntou-se aos melhores – a Kalaf Epalanga, a Branko ou ao londrino Seiji – para produzir uma sonoridade que, tal como num festim tropical, se faz de partilha de raízes, de latitudes e de harmonias.
Em 1989, com seis anos, Dino D’Santiago foi pela primeira vez a Cabo verde. A estada na terra onde os seus pais tinham nascido, no interior da ilha de Santiago, foi traumatizante. A falta de água potável e de luz elétrica, os telhados de palha, a escalada até uma capela remota onde se rezava o terço ao fim da tarde, a pobreza extrema, foram tão traumáticos que Dino só regressaria à ‘sua’ terra 22 anos depois – para fazer as pazes com a sua genética, para diluir as saudades de um lugar que julgava pouco seu, para se reconciliar com o crioulo e para firmar a sua sonoridade – assente na soul, no funk, no funaná, no batuque, na eletrónica, no afro-house e no hip-hop, como uma tatuagem onde cabem muitos passados.
Naquela noite de 12 de Maio de 2018, na Altice Arena, no Festival da Eurovisão (como retribuição por Salvador Sobral ter vencido a Eurovisão no ano anterior), Branko foi convidado a mostrar aquilo que Portugal tinha de melhor musicalmente. E convidou Sara Tavares, Plutónio, Mayra Andrade e Dino D’Santiago para exibirem a nova linguagem mestiça que se servia cá no burgo.
Em casa (em Portugal e por toda a Europa) ou na plateia do Parque das Nações, foram milhões os que recorreram ao Shazam para transpor para a sua playlist aquelas canções envolventes, aquela narrativa contemporânea. O Shazam não conseguiu ditar a sua origem – porque as canções eram um exórdio daquilo que se estava ainda a pluralizar naquele ano. Uma das canções era ‘Nova Lisboa’ (letra de Kalaf Epalanga e interpretada por Dino D’Santiago) – a punchline a agregar aquela celebração. ‘Nova Lisboa’ era, é, a perífrase de um Portugal aculturado. De um Portugal crioulo. De um Portugal mestiço. De um Portugal que exprime no seu novo dialeto as suas várias aceções. De um Portugal que transporta Luanda, São Paulo, Praia, Bissau ou Maputo. Mas também de um Portugal onde cabe Fela Kuti, Youssou N’Dour ou Salif Keïta. De um Portugal que absorve o Gana, o Senegal, a África do Sul e a excêntrica Europa. Branko, Sara Tavares, Plutónio, Mayra Andrade e Dino D’Santiago foram os mensageiros das sonoridades da CPLP e aquilo que une a CPLP ao mundo. Foram construtores de histórias, de enredos, agregadores de sonhos sofisticados. Quiseram partilhar a vontade de tudo aquilo que haveria de se dizer e que porventura ainda não fora dito. Entendiam o que era o mundo multicultural, o que era a Lisboa multicultural, a Lisboa de um epicentro que cria tendências e que faz soar um canto novo – uma, enfim, Nova Lisboa.
Lisboa é hoje uma cidade de guetos, mas também de elites. De bonés com a pala virada do avesso, de ténis Adidas de cores garridas e gestos efusivos. Mas Lisboa é também uma cidade de peúgas grossas enfiadas em Crocs, falada em línguas estranhas. De cabelos loiros e mapas da sua geografia a bordo de um tuk-tuk. De serões a ouvir fado à volta de garrafas de Mateus Rosé (lovely wine they have). Já não há a Lisboa de Belarmino Fragoso, de Kilas ou de Tony Morgon. Já não há a Lisboa de néones de filmes nos Restauradores, do Parque Mayer, do Ritz Club. Já não há a Lisboa de bons malandros, de marialvas, de melenas penteadas com brilhantina. Já não há a Lisboa de Cardoso Pires. De Dinis Machado. De Cesário Verde. De cabarés, de pregões e de madrugadas em antros de perdição. Mas há uma outra Lisboa. Uma ‘Nova Lisboa’. Uma Lisboa que, não sabendo como será fazível, se quer diluir por via de novas cores, de novos sons e de novas línguas – firmando a sua identidade no presente que vai acontecendo.
Dino D’Santiago tenta deixar legado dessa Lisboa de extremidades. De uma Lisboa que é também muito dele. De um país plural, lusófono, composto de muitos dialetos e culturas. De um país que é também muito dele. Dino D’Santiago soube peneirar o seu passado. O seu passado num bairro de pescadores em Quarteira e férias grandes na Cova da Moura. Atravessava a ponte 25 de Abril e no Arco do Cego apanhava um táxi que o levaria até à Amadora, até à Cova da Moura – um bairro com casas de vários andares, com associações como o Moinho da Juventude com vários andares. Um bairro onde se falava crioulo. Um bairro que era um pedaço de Cabo Verde, como se Lisboa tivesse o seu bonsai de Morabeza. Um bairro que o pequeno Dino D’Santiago via como um bairro de gente afortunada – ali na cercania de Lisboa – com água canalizada e eletricidade, ao contrário do seu, a sul, com casas planas de contraplacado. Foi preciso depurar esse passado, esses passados, para produzir uma Lisboa sofisticada que se desenovela para o futuro.
Dino D’Santiago. Dino D’Quarteira. Dino D’Porto. Dino D’Lisboa. Claudino Pereira – que poderia ter ajustado o seu nome ao que quisesse – escolheu unir. É filho de imigrantes africanos. Negro. Abala-o as injustiças. Sensibiliza-o as desigualdades. As assimetrias. Mas escolheu celebrar os contrastes em vez de os vincar. Pede a todos que entrem na roda com ele – para que façamos parte do mesmo círculo. É, em resumo, um antropólogo que usa a música para refletir sobre aquilo que nos une. Um criador de tendências que se sedeiam em Lisboa.
Ajudou a soar o som crioulo de que se faz a sua cidade. O som crioulo de que se deveria (sempre) fazer uma família de amigos. ‘Nova Lisboa’ é a canção que alumia o resgate das nossas raízes rítmicas. Que alumia a emancipação de um país contemporâneo, com matrizes musicais exóticas e orgulhoso de um futuro que Dino D’Santiago está a ajudar a aproximar.
De onde veio toda essa gente, eu não sei
Dizem que tamos na moda, ma ’n ka krê sabê
Ali ‘sta tudu dretu, ma não tou nessa
De vender a sôdade ou a morabeza
Ouvir também: ‘Djonsinho Cabral’ (2013). Do seu primeiro álbum, “Eva”, é uma canção original d’Os Tubarões, de Ildo Lobo, a enfatizar a genética musical de Dino D’Santiago
- Texto: Blitz do Expresso, jornal parceiro do POSTAL