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Pós-doutorado em Artes Visuais pela Univ. de Évora;
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Recentemente estive em Amesterdão e estava a decorrer a exposição “Body Worlds – The Happiness Project Amsterdam” (“Os mundos do corpo – O Projeto Felicidade”).
Supostamente, esta exposição, com mais de 200 preparados anatómicos de corpos humanos reais, pretende ajudar a “descobrir as maravilhas do corpo humano”.
Mas será que os espetadores, ao observarem as obras expostas, sentem “as maravilhas” do corpo humano, em vez de alguma aversão em relação ao mesmo?
É óbvio que isso vai depender da sensibilidade de cada espetador. Mas a questão de fundo que esta exposição nos leva a colocar tem a ver com os limites no uso do corpo humano na arte.
Logo no segundo artigo de opinião, nesta minha participação no Cultura.Sul, intitulado “Mas isto é Arte?”, procurei analisar a questão dos limites da obra de arte, apresentando o exemplo da instalação realizada por Guillermo Habacuc, em 2007, em que apanhou um cão abandonado, tendo-o colocado atado a uma parede de uma galeria de arte, deixando-o a morrer lentamente de fome e de sede, perante os visitantes dessa exposição. Nessa análise considerei que, os caminhos da arte são cada vez mais difíceis de definir, mas que pelo menos os limites da ética devem ser respeitados. Aproveitando as palavras do poeta José Régio, em “Cântico Negro”, “não sei por onde vou, mas sei que não vou por aí”…
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Desta vez temos a problemática da utilização do corpo humano nas artes visuais. Nos últimos anos temos assistido a um aumento da sua utilização, até pelo incremento da arte performativa, que trabalha com a expressividade do corpo humano.
Em Portugal, mais concretamente na Cordoaria Nacional, em Lisboa, também tivemos a exposição “Real Bodies – Descubra o corpo humano”, no final de 2015, a qual foi vista por mais de 50 mil pessoas. Esta tem sido apresentada como a maior e mais completa exposição de órgão e corpos humanos reais, organizada por uma empresa norte-americana, e já foi exibida noutras cidades, somando mais de 15 milhões de visitantes.
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Em mais de 1.500 metros quadrados, a exposição apresentava mais de 350 órgãos e corpos humanos verdadeiros em várias posições anatómicas, em particular órgãos afetados por doenças e ainda corpos de atletas durante a prática desportiva, bem como corpos a realizarem atividades do dia-a-dia, nomeadamente relações sexuais. A última sala era a galeria dos desportistas, com dez corpos que pareciam estar em movimento, enquanto praticam diferentes desportos, para motivar as pessoas a mexerem-se.
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Já anteriormente, em 2007, depois de ter sido vista por cerca de 20 milhões de pessoas em todo o mundo, havia ocorrido em Portugal a exposição “O Corpo Humano Como Nunca o Viu”. Na altura eram 17 corpos humanos inteiros e mais de 250 órgãos provenientes de doações à ciência, que foram cremados no final da exposição. Pensada para toda a família, a exposição foi concebida para dar a conhecer o funcionamento do corpo humano e incentivar os visitantes a assumir hábitos de vida mais saudáveis.
Teria sido interessante avaliar se, após assistirem a estas exposições, as pessoas alteravam os seus hábitos de vida no sentido de se tornarem mais saudáveis, em particular se começavam a praticar mais desporto.
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Tenho sérias dúvidas que o efeito tenha sido esse, sobretudo na exposição mais recente, “Real Bodies”, até porque nesta era possível observar fraturas em ossos, próteses, órgãos danificados por doenças graves, nomeadamente ovários com quistos, fígados atacados pela cirrose ou hepatite, bem como próstatas e seios com cancro.
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Além disso, uma parte desta exposição consistia num espetáculo de suspensão, em que homens e mulheres, artistas da “Wild Suspension Team” (“Equipa de Suspensão Selvagem”), se penduravam pela pele com ganchos de metal, ficando suspensos no ar, sendo visível o sangue a escorrer pelo seu corpo. Em Roma, pelo menos 13 pessoas tiveram que ser vistas por médicos depois de assistirem a essa parte da exposição “Real Bodies”, tendo o espetáculo sido cancelado quatro dias depois da inauguração. No entanto, a organização do evento afirmou que se sentia na obrigação de cancelar a exibição porque acreditava que mantê-la eliminaria a possibilidade de admirar essa técnica incrível de performance artística.
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Esta situação faz-nos lembrar a obra de Damien Hirst “A impossibilidade física da morte na mente dos vivos” (1991), em que se encontra colocado um tubarão-tigre morto dentro de um tanque feito de vidro e aço, suspenso numa solução de 5% de formaldeído. Num artigo de opinião anterior havíamos colocado a questão sobre se isto pode ser considerado Arte e voltamos a colocá-la também em relação à exposição “Real Bodies”.
A imagem visual pode ser usada para chocar e a arte tem procurado desenvolver cada vez mais esta abordagem, em particular explorando os limites no uso do corpo humano, mas não acredito que desta forma se promovam hábitos de vida saudável ou a felicidade dos espetadores. Talvez até se aumente mais a aversão, em vez da percepção de beleza ou a satisfação com certas partes do corpo. Para o caso de querer fazer o teste no seu caso pessoal, informo que a exposição a que fiz referência no início deste artigo estará aberta ao público até 3 de setembro.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)