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Consultora Filosófica
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As gerações mais novas fazem tudo com o telemóvel, não precisam de papéis nem de relógios. Eu sou um pouco bota de elástico, e além da agenda levo sempre na carteira um pequeno caderno de apontamentos. Hoje a esferográfica falhou. Entro na primeira papelaria que encontro para comprar outra. Deparo-me com um abundante mostrador. Existem canetas das mais variadas formas, cores e feitios, umas com ponta mais grossa, outras de ponta fina. Os sistemas de veiculação da tinta também variam, bem como os preços, desde a Bic à Mont Blanc tudo é possível. Acabo por me perguntar o que é que me permite dizer que todas elas são canetas se todas elas são tão diferentes? Têm o mesmo uso, servem para escrever. Mas um lápis também serve para escrever e não é uma caneta. Por outro lado, posso usar uma caneta para muitos outros fins que nada têm a ver com a finalidade para que foi construída. Tenho uma colega que utiliza constantemente uma caneta para apanhar o cabelo, em forma de toutiço, na parte de trás da cabeça. Na papelaria há também bonecos-caneta. Neste caso a utilidade caneta está camuflada e aparece como um extra. O seu primeiro identificador não é ser caneta. Afinal, o que é que me permite subsumir todos estes objectos tão diversos no singular e único conceito de caneta? Então, do fundo da memória, como um pássaro inadvertido que de repente esvoaça bem alto, lembro-me que tudo se deve à imaginação. Até para o acto de conhecimento mais elementar é requerida a imaginação. De facto, estamos sempre a imaginar!
O filósofo Emanuel Kant (1724-1804) na sua obra Crítica da Razão Pura trata, justamente, da problemática do conhecimento. Ali se demonstra que o órgão, por excelência, que utilizamos para conhecer é o Entendimento que recebe a informação que lhe entra pelos órgãos dos sentidos, que são as nossas janelas para o mundo, depois de organizada pela Sensibilidade através das suas formas à priori Espaço e Tempo, produzindo o Fenómeno. O entendimento recebe estes fenómenos e trata, por sua vez, de os organizar através das Categorias ou Conceitos Puros que podem ser de quatro tipos: quantidade, qualidade, relação e modalidade.
De uma forma muito simples quer isto dizer que não andamos a tropeçar na quantidade, mas se quisermos contar cadeiras, precisamos de utilizar a categoria “Quantidade” que é um conceito puro do entendimento. Do mesmo modo, para podermos dizer que algo existe ou não existe, que é possível ou impossível, precisamos de estar na posse da categoria da modalidade que é aquela que nos permite emitir este tipo de juízos. Mas tem de haver um terceiro termo, “que deva ser por um lado, homogéneo à categoria e, por outro, ao fenómeno e que permita a aplicação da primeira ao segundo. Esta representação mediadora deve ser pura (sem nada de empírico) e, todavia, por um lado intelectual e, por outro, sensível. Tal é o esquema transcendental.” (CRP p. 182).
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O esquema é sempre um produto da imaginação. E há que distinguir o esquema da imagem. Quando, por exemplo, disponho cinco pontos uns a seguir aos outros, tenho uma imagem do número cinco. Em contrapartida, quando penso no número em geral, que pode ser cinco ou cem, este pensamento constitui um método para representar um conjunto, de acordo com um certo conceito. Ora é esta representação de um processo geral da imaginação para dar a um conceito a sua imagem que Kant designa por “esquema” desse conceito. (CRP p. 183)
Estão a ver o esquema? Como é que isto funciona, na prática?
Em todas as subsumpções de um objecto num conceito como aconteceu, por exemplo, com a classificação das canetas na papelaria a representação do primeiro tem de ser homogénea à representação do segundo, isto é, o conceito tem de incluir aquilo que se representa no objecto a subsumir nele. Kant exemplifica-o de forma cristalina: “possui homogeneidade com o conceito geométrico puro de um círculo, o conceito empírico de um prato, na medida em que o redondo, que no primeiro é pensado se pode intuir neste último.” (CRP 181).
Mas o que acontece com os conceitos sensíveis puros? O que acontece com o conceito de triângulo, por exemplo? É aqui que o esquema se torna relevante! Ao conceito de um triângulo em geral nenhuma imagem seria jamais adequada. Com efeito, não atingiria a universalidade do conceito pela qual este é válido para todos os triângulos sejam eles equiláteros, isósceles ou escalenos. “O esquema do triângulo só pode existir na imaginação e significa uma regra da síntese da imaginação com vista a figuras puras no espaço.” (CRP 183). Esqueçamos os triângulo e pensemos num cão. “O conceito de cão significa uma regra segundo a qual a minha imaginação pode traçar de maneira geral a figura de certo animal quadrúpede, sem ficar restringida a uma única figura particular, que a experiência me oferece ou também a qualquer imagem possível que posso representar in concreto.
Enfim, não precisamos de ser fantasiosos, criativos, ou sonhadores, para imaginar. Em qualquer acto de pensamento a imaginação é fundamental. É esta a nossa natureza. Estamos, sempre, já a imaginar!
O Imaginário e a Cidade
Bjarke Ingels (1974-), o jovem arquitecto fundador do grupo BIG, é autor do manifesto Yes is more onde se afirma que se o que nos define é sermos o oposto de um outro, então, estamos apenas a ser seguidores em sentido inverso! “Não será possível fazer as pessoas felizes sem nivelar por baixo? E realizarmos os nossos desejos sem passar por cima de ninguém?” Resolveu filosofar de forma tridimensional. Os seus edifícios põem em prática os novos conceitos filosóficos que propõe, tais como o Edonismo Sustentável ou o Periscópio Democrático. “Os arquitectos tornam-se os parteiros [em sentido socrático, claro!] de uma nova espécie de arquitectura moldada pela multiplicidade de interesses”. Sem tomar partidos, a arquitectura do sim cria uma realidade em que não é preciso escolher, torna-se inclusiva, contempla todas as vertentes do conflito e aumenta o nó górdio. Resultados? Uma fábrica de reciclagem de lixo que é também uma estação de ski e cujo insipiente dióxido de carbono que cria é transformado em fumo artístico; um palácio governamental transparente onde o cidadão comum pode ver se, de facto, aqueles que elegeu para o representar dormem a sesta ou trabalham; uma sala de parlamento com um periscópio gigante que faz com que os políticos não possam deixar de ver a cidade e as gentes sobre a qual tomam decisões, e muito, muito mais…
O Espaço do Pensamento
Na minha cidade imaginária existem boas condições para filosofar, há espaço e tempo para a partilha e construção conjunta de pensamento. Que quer isto dizer? Quer dizer, por exemplo, que em vez da habitual conversa de café em que cada um se lamenta da vida, do tempo, do governo ou do que quer que seja, há possibilidade de descer realmente ao cerne daquilo que nos importa. Espaço e tempo para perceber, por exemplo, como actua a faculdade da imaginação em nós. Curiosidade para tentar averiguar como acontecem estes milagres quotidianos que de tão anestesiados e indiferentes que andamos, nem nos damos conta. Como é que eu consigo subsumir uma caneta no conceito de caneta? Como reconheço que um cão é um cão ou como identifico triângulos? Como funciona a minha mente? Como funciono eu própria?
Na cidade em que resido criei um espaço-tempo a que chamei Café Filosófico onde uma vez por mês os participantes se reúnem para realizar este tipo de viagem. Às vezes o café transforma-se em Simposium quando é Dionísio que serve à mesa, e os convivas têm o cuidado de beber só até àquele ponto em que a língua se solta, mas não se entaramela! É o meu contributo para tornar um sonho realidade: trazer a filosofia para fora dos muros da Academia. Fazer, enfim, o que Sócrates fazia: conversar com os outros cidadãos da cidade. Averiguar do rigor dos conhecimentos obtidos, medir-lhes alcance e finitude, purgá-los se necessário fosse, para deitando abaixo as pseudo-compreensões, começar então a construir a casa-cidade com fundamentos sólidos.
Estas reflexões continuam nos Cafés Filosóficos realizados em Faro: inscrições em [email protected]
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)