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Classicista;
Professora da Univ. do Algarve
[email protected]
O livro sobre o qual vou escrever é único. Literalmente. Tem a particularidade de não se encontrar à venda em nenhuma livraria, mas apenas por encomenda direta à editora, que o fará… à mão. Exatamente. Por isso, cada exemplar é único e demora dias a ser feito, ficando com a certeza de que não haverá nenhum igual. Porque a filosofia da editora, Beatriz Hierro Lopes, é essa: que não haja edições em massa, nem livros iguais; que não haja coleções, porque cada livro e cada autor têm a sua personalidade e projetos próprios; que se eliminem os intermediários (livrarias, distribuidoras) e que ganhem em partes iguais aqueles que constroem o livro: o escritor, porque o escreve, e a editora, porque o faz. Hierro Lopes edita o texto, pagina, mistura as cores, pinta a capa, cose as folhas umas às outras e vende-o diretamente ao leitor/comprador, personalizando com o nome que indicarmos, assinando (e às vezes) numerando cada exemplar. Nas últimas edições, um lacre com o logótipo da editora dá um ar de sua graça.
Escolhi o Diário do Farol. A Ilha, a Cadela e Eu, porque foi o primeiro livro editado por Hierro Lopes. Por coincidência, a autora, Ana Cristina Pereira Leonardo, cronista do jornal Expresso, nasceu em Olhão, e o ambiente descrito na obra é o da ilha do Farol.
A Ilha
Ia começar a escrever que a ação se passa no Farol, mas este livro não é um livro onde haja uma ação a passar. É um livro de «estar», onde as coisas acontecem ao ritmo da natureza e do modo como as personagens vão interagindo com ela: com a chuva, o vento, a areia, os animais, as aves.
Em forma de diário, vamos passando pelos dias que se acumulam em pequenas entradas numeradas de 1 a 55, que podem ocupar poucas linhas ou algumas páginas, ao sabor do tempo.
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É inverno e a ilha está quase deserta. A narradora consegue criar um ambiente simultaneamente parado e cheio de força, como se o tempo por ali não passasse, onde o olhar se pode demorar nas pequenas coisas e os pensamentos não pesam («8. Desde que chegámos, o hibisco sob a acácia da casa deu três flores. Hoje de manhã uma delas estava toda encarquilhada, como se fosse uma folha de papel crépon do tempo da infância. Fiquei a pensar que as coisas vivas nos lembram coisas mortas e às vezes o contrário. São pensamentos simples» – p.13), mas se os elementos se impusessem na paisagem: «28. Faz um vento danado. Varre os céus e a ilha deixando-a ora a descoberto, ora à mercê das nuvens. O mar encrespado do canal muda de cor conforme a luz incide ou não incide sobre ele. […]. No canal, as ondas correm enviesadas parecendo empurrar toda a água do mar na direção da ilha» – p.26).
A Cadela
Esta cadela é o motor de muito do que a narradora faz, visto ser a sua companheira dos passeios (escolhidos ou forçado, à sua procura). Quando aquela chega a casa a cheirar muito mal, ou suja, ou molhada, ou a dona se dá conta de que as pessoas da ilha a conhecem e têm alguma história com ela (estes pronomes «a» e «ela» referem-se à cadela), certamente acontecida nas horas de ausência, não há ralhar nem castigos, mas a manifestação do carinho que as une e da inevitabilidade da desigualdade da relação: «Chamo-a insistentemente. Finge que não me ouve embora não se afaste nunca demasiado. Depois parece desinteressar-se do jogo e começa a farejar o chão à sua volta. Sou obrigada a voltar para trás. Não há nada de mais caricato do que um ser humano a tentar, inutilmente, ser obedecido por um cão. Faço-lhe uma festa quando chego perto dela e tomamos juntas o caminho de casa» (p.21).
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Não sabemos como se chama, mas sabemos que tem um amigo, cujo dono já morreu, e que, depois disso, passou a ser «o cão de todos e de ninguém. Dizem-me que se chama Levezinho. À noite, cava um buraco na areia em frente da casa que foi do dono. É aí que dorme. Já vários o tentaram recolher, mas ele recusava-se a dormir a não ser ao relento. Mesmo com frio e chuva. Um cão solitário, o que combina particularmente bem com a ilha nesta altura do ano» (p.16).
e Eu
É com dificuldade que conseguimos afastar a narradora da autora, pois esta já disse que a obra se baseou na sua vivência de dois meses na ilha do Farol, no inverno de 2014. Para dificultar, há mais duas características que contribuem para a ideia de veracidade: o facto de o livro ter quatro fotografias (que incluem a cadela e o farol) e o género ser o diarístico, mas não do tipo confessional. Cada leitor, com as suas próprias referências, verá as dela. Ou não. Mas, certamente, verá as suas. Porque as citações ou alusões também não estão no texto para dar estilo, mas surgem com a simplicidade que acompanha o pensamento divagante. Por exemplo, depois de constatar que «O silêncio voltou e o céu está carregado de estrelas», termina com dois versos, assinalados em itálico, como que acordados pelo sossego: «Se houvesse degraus na terra e tivesse anéis o céu,/ Eu subiria os degraus e aos anéis me prenderia» (p.33). Percebemos que é uma citação. Se reconhecermos Herberto Helder, tanto melhor. Estas referências que lhe (nos) vêm à memória, despoletadas por um pequeno nada, pode depreender-se neste passo: «Apanhei de novo a cadela a rebolar-se com assinalável prazer no cadáver ressequido de uma ave que não consegui identificar. Na minha cabeça chamei-lhe cadáver esquisito, expressão que neste caso pode ser interpretada literalmente» (p.31). Quando li, sorri, pois também eu, ao ler «cadáver esquisito», me lembrei logo do cadavre exquis dos surrealistas. E fiquei com vontade de jogar. Conhecem? Pode-se desenhar ou escrever. Eu costumava fazer com os meus amigos assim: um escreve uma frase numa linha e termina com uma palavra na linha seguinte, dobrando a folha de papel de modo a que o próximo (quantos mais, melhor) só veja essa última palavra e, a partir dela, escreva, por sua vez, uma frase, repetindo o processo. O resultado será, evidentemente, um texto surrealista, muito interessante.
Vieram-me outras memórias (quem conta sete ondas antes de mergulhar?) e, acima de tudo, muita tranquilidade. Agora que o verão está a chegar e os barcos para o Farol estarão a abarrotar, é bom ler este livro calmo, feito de tempestades e de mar revolto.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)