Setenta e três dias depois do início da guerra na Ucrânia, numa publicação no Instagram, Volodymyr Zelensky escreveu: “estamos a defender-nos do ataque de um tirano que quer destruir tudo o que dá liberdade às pessoas e aos Estados, uma luta que é compreensível nos quatro cantos do mundo”. Um texto que é acompanhado por várias fotos, duas são da autoria do repórter da SIC, Rui Caria.
Sobre a importância desta publicação, o jornalista da SIC diz: “as imagens ficarão para contar a guerra na Europa, e todos sabemos a força que encerra uma imagem. Sobre esse tema não há divergência”.
Rui Caria acrescenta ainda: “as imagens são um testemunho do que vemos aqui. Do que se passa aqui. E as redes sociais, com todos os perigos que guardam, também podem servir para ampliar a voz dos menos ouvidos e assim ajudarem a deixar cair a cortina da censura que, como se sabe, é cada vez mais densa também neste lado do mundo.”
As fotos publicadas por Volodymyr Zelensky fazem parte de duas reportagens emitidas pela SIC: uma de Kharkiv e outra de Trostyanets.
“HÁ MAIS DE 60 DIAS QUE NÃO SAÍAM PORQUE ESTAVAM TRAUMATIZADAS COM OS BOMBARDEAMENTOS”
Na reportagem a leste de Kharkiv, Rui Caria relata que cerca de 50 pessoas têm vivido numa cave desde o início da guerra. Entre o grupo estão crianças que não saíam para brincar há mais de 60 dias. Esta semana, ultrapassaram o medo e voltaram a correr na rua.
Os moradores do prédio costumam utilizar o bunker para dormir, ou quando há bombardeamentos na zona. O edifício está parcialmente destruído e já só há água nos primeiros dois andares.
TODOS OS EDIFÍCIOS DE TROSTYANETS FORAM DESTRUÍDOS
No trabalho na cidade de Trostyanets, a cerca de 100 quilómetros a norte de Kharkiv, o repórter da SIC testemunha a destruição, que é completa. No ar sente-se ainda um cheiro a queimado, como relatou.
O cenário é devastador na cidade onde viviam cerca de 20 mil habitantes. Trostyanets foi ocupada pelos russos a 24 de fevereiro e só voltou ao controlo ucraniano a 28 de março. Da cidade que era, há muito pouco para mostrar. Casas civis, escolas, estação de comboios estão completamente destruídas. Na estrada veem-se carros e tanques também destruídos. O cemitério e as beiras das estradas estão minadas.
O trabalho de recuperação da cidade de Trostyanets será intenso.
Rui Caria esteve na Ucrânia 18 dias, em março e abril, mas decidiu voltar a 4 de maio. Porquê? Diz que não sabe explicar. “Depois de sair daqui da primeira vez, fica-se com a sensação de termos abandonado algo. Não abandonámos nada mas fica essa sensação”, explica o repórter da SIC.
“NUNCA CHEGAR A CASA TEVE TANTO SIGNIFICADO”
Quando regressou aos Açores, depois dos primeiros dias na guerra, escreveu nas redes sociais que “nunca chegar a casa teve tanto significado”.
“Em quase vinte dias a guerra ensinou-me os outros vários lados desta profissão. E apesar da experiência que me foi dada por lá, em termos jornalísticos, não esquecerei a experiência pessoal destes dias de conflito. A guerra é muitas coisas, vê-se destruição e gente morta no caminho. É o caos criado pelo Homem. Já vi muito disso “noutras guerras” e com outras armas, mas foi na imagem de um pequeno gato, que há dias correu por mim a arder, que senti que a guerra é completamente anacrónica e irracional e por isso indizível. Os animais não fazem mísseis. Somos nós. Somos nós na nossa pretensiosa racionalidade que havemos de erradicar tudo à nossa volta até nos elidirmos a nós. E está a acontecer.“
“NÃO É POSSÍVEL FAZER JORNALISMO DE SOFÁ NUM CENÁRIO DE GUERRA”
Num texto em tom de reflexão e de balanço de 30 anos de profissão escreveu que “não é possível fazer jornalismo de sofá num cenário de guerra. O jornalismo de guerra incorpora os jornalistas num dos lados da trincheira, normalmente no lado dos oprimidos; os americanos chamam-lhe “embedded journalists”. O conceito de jornalismo, como o conhecemos, termina aqui.”
“Pensamos que fazemos jornalismo ao contar um lado da história numa guerra, mas eu prefiro pensar que testemunhamos e comunicamos ao público esse testemunho à luz do que vemos, sentimos e vivemos. Somos veículos das nossas certezas e incertezas. É simples; na guerra não há jornalismo. Na guerra há apenas jornalistas que devem ser capazes de analisar e codificar acontecimentos, para a seguir descrevê-los, amplificando, através das possibilidades que têm, a voz dos que não têm a possibilidade de serem escutados. Se aceitarmos isto logo à partida faremos um trabalho mais honesto e menos hipócrita no terreno. E hipócrita, aqui, é tentar ser um jornalista convencional quando não é possível sê-lo. Tampouco é possível ser isento ao sofrimento do outro.“
“TENHO MAIS DE ESTÚPIDO DO QUE DE HERÓI”
Rui agradeceu às centenas, talvez milhares, de mensagens de amigos e de pessoas que nem conhece.
“Acharem que eu sou, ou fui, um herói. Era bom… Tenho mais de estúpido do que de herói. Mas conheci heróis por lá: uns tinham armas nas mãos para lutarem pela sua terra, outros rezavam pelas igrejas; vi heróis a distribuírem comida a outros heróis, vi heróis que o são apenas porque se tentam manter vivos em caves de betão. Vi heróis ainda crianças, outros heróis que choravam. Heróis por lá não faltam. Alguns já vi sem vida, mas heróis sempre. A guerra gera muitos heróis, mas no jornalismo não existe heroicidade de espécie alguma.”
Rui Caria nasceu na Nazaré em 1972 e vive há 17 anos nos Açores. Iniciou a carreira profissional em 1990, passando a repórter e editor de imagem da SIC Notícias em 2006. Conquistou distinção com a Câmara de Prata da Federação de Fotógrafos Europeus em 2016 e o Prémio Nacional de Portugal dos Sony World Photography Awards em 2019.
- Texto: SIC Notícias, televisão parceira do POSTAL