Por Susana Venceslau (texto) e Tiago Petinga (foto), da agência Lusa
António tem 50% de visão e repõe produtos num supermercado, Manuel tem paralisia cerebral e trabalha em cibersegurança, os dois comprovam que a deficiência é apenas mais uma diferença no momento de mostrar trabalho.
António Ferreira tem 42 anos e nasceu com uma deficiência visual que lhe afeta o nervo ótico, provoca-lhe miopia, estrabismo e estigmatismo e lhe reduz a capacidade de visão, que, graças a lentes, chega a 50%.
No trabalho, esta incapacidade por vezes interfere naquilo que António tem de fazer, já que faz reposição de produtos num supermercado e isso implica olhar e ler códigos de barras ou distinguir embalagens que podem ser muito parecidas.
“Uso o telemóvel como ferramenta de trabalho para fazer ‘zoom’ sobre os produtos. Por exemplo, um produto de beleza, em que são letras mais pequeninas, ou de higiene pessoal, eu faço ‘zoom’ sobre o produto e sei que o produto pertence a determinado local. Para ver as próprias etiquetas e os códigos de barras funciona da mesma maneira”, explicou.
Além da ferramenta tecnológica, António admitiu que conta igualmente com a ferramenta humana, já que qualquer colega ou chefe dão uma ajuda sempre que é preciso, o que se revela “muito importante”.
“Só tenho a dizer bem da equipa de trabalho e isso também me tem ajudado na integração e acho que a integração tem sido mais positiva não só pela minha força de vontade, mas também pelo apoio deles. Tem sido um apoio muito importante e acho que sem o apoio deles eu não ia conseguir sozinho”, contou.
Pedro Cerdeira, que é operador de loja no mesmo supermercado Continente Bom Dia onde António trabalha e que tem acompanhado o seu trabalho desde que ali começou há cerca de um mês, admitiu que a maior dificuldade do colega é identificar todos os produtos, uma vez que alguns só se distinguem pelos códigos de barras ou têm diferenças mínimas.
“Ele tem tido muita determinação. Não é uma pessoa de chegar aqui e ficar sem saber o que fazer. Pelo contrário, se não tiver nada para fazer pergunta onde é que é preciso ajuda e isso faz a maior parte da diferença quando está a trabalhar”, elogiou.
Uma determinação que suplantou a deficiência no momento do relacionamento com os outros colegas, já que, tal como frisou Pedro Cerdeira, todos são diferentes uns dos outros e em nenhum momento a deficiência do António fez a diferença.
“Cada um tem que lidar com as suas diferenças. [A deficiência do António] é só mais uma”, relativizou o responsável, segundo o qual a vontade de trabalho do António só faz com que “os outros colegas tenham mais motivação”.
António encontrou este trabalho através da Valor T, uma agência de emprego para pessoas com deficiência, criada há dois anos pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Assim que a irmã lhe falou na Valor T, António foi logo inscrever-se. Cumpriu todos os passos e deixou claro que estava disponível para trabalhar onde fosse preciso, “fosse a varrer ruas, num cemitério, fosse a fazer o que fosse”.
“Aliás, eu disponibilizei-me para o país todo para trabalhar [porque] eu queria mesmo era trabalhar”, afirmou.
Manuel não conhece António, mas, tal como ele, faz parte do grupo de cerca de 200 pessoas que encontrou um trabalho graças a esta agência da Santa Casa da Misericórdia.
“Eu faço mapeamento de segurança. A nossa empresa faz ‘rating’ de cibersegurança e eu faço mapeamento das empresas, [saber] o género, nome, onde é que fica, o número de trabalhadores, se tem subsidiárias, e por aí adiante, e este é o trabalho que grande parte da equipa está a fazer”, explicou Manuel Ferrão, 35 anos, à Lusa.
Garante que faz o mesmo trabalho que qualquer outro colega e que o faz “completamente autonomamente”, mesmo até porque nunca gostou que tratem as pessoas com deficiência “como pessoas diferentes”: “Somos cidadãos e pessoas como outras quaisquer”.
Já teve más experiências – como quando, numa entrevista, lhe disseram que as pessoas com deficiência não se deviam candidatar a um emprego de ‘front office’ porque davam má imagem à empresa – mas prefere relativizar como “experiências pontuais”.
“Tirei dois cursos, já trabalhei em grandes empresas, eu [pensei] vou conseguir arranjar [emprego]”, contou, admitindo que a paralisia cerebral, que lhe rouba a mobilidade na perna e braço esquerdos, a visão no olho direito e lhe deixou 64% de incapacidade, nunca o prejudicou particularmente.
A inscrição na Valor T acontece durante a pandemia, numa altura em que estava sem trabalhar. O desemprego durou apenas alguns meses, ao ponto de quando a proposta da Bitsight chegou ao mail de Manuel, ele já estar a trabalhar noutro sítio.
“Na altura pensei: Para trocar de trabalho, tem que ser um trabalho em que eu me sinta bem recebido e na altura foi assim, senti-me muito bem recebido”, revelou, acrescentando que também o atraiu o facto de ser um trabalho “bastante dinâmico e interessante”.
Luís Ramos, gestor da equipa de ‘tecnical research’ da qual Manuel faz parte e responsável pela sua avaliação, contou que Manuel se “destacou pela positiva” durante o processo de recrutamento de três fases, salientando o facto de falar inglês e de ter-se adaptado “muito bem” ao software criado pela empresa.
“Um dos melhores momentos que já tive enquanto ‘manager’ do Manuel foi quando ele me disse, numa conversa, que sentia que fazia parte, [e me disse] esta é a minha casa, a minha equipa, e para mim isso foi excelente”, admitiu.
Para a coordenadora da Valor T, Vanda Nunes, é preciso que as empresas percam o medo de contratar pessoas com deficiência e saibam que há uma agência que ajuda a integrar a diferença no processo de recrutamento, e a mostrar que num mundo de diferenças, a deficiência é só mais uma.