Animais. O mundo é habitado por uma diversidade de espécies, e infelizmente muitas já se extinguiram ou estão no processo de extinção.
Habituámo-nos a olhar este mundo, permitam-me dizer, muito erradamente, pois fomos educados tradicionalmente de que “somos nós e os outros”, colocando-nos no topo da cadeia e legitimando-nos a usar tudo e todos “os outros” para nosso proveito.
A visão antropocentrista, com a qual muitos e muitas de nós crescemos, considera o animal humano como o que mais de valor existe no universo, tendo maior valor intrínseco do que as restantes espécies de animais.
No entanto, a visão antropocêntrica não tem qualquer justificação plausível. Na verdade, o ser humano, com mais habilidades para umas coisas e menos para outras (não voamos como uma águia, não corremos como um jaguar, não temos visão noturna de um felino!), coexiste com outras espécies e outros organismos neste planeta, não detendo maior ou menor valor intrínseco do que eles.
Esta visão centrada no animal humano justificou e ainda justifica atos bárbaros e muito cruéis contra outras espécies de animais, considerando que estas são um produto, um recurso ou uma ferramenta ou uma praga. Esta perspetiva, muito errada e contestada por vários pensadores (veja-se Leonardo da Vinci [1]), conduz a uma discriminação sobre outros animais de espécies diferentes, o especismo.
Tal como o machismo, racismo, xenofobia, o especismo é um tipo de discriminação que a maioria dos animalistas procura combater no seu dia-a-dia. Porque é que aquela vaca tem que estar presa e ser explorada? Porque é que eu tenho que beber o leite da vaca quando este existe naturalmente para as suas crias?
Ao longo de séculos têm-se levado a cabo muitos atos violentos sobre outros humanos e não humanos, só porque eram diferentes da “minoria dominante”, como sabemos. Mas também ao longo dos séculos existiram pensadores de renome que se insurgiram e reivindicaram o reconhecimento de um digno estatuto para determinados grupos de humanos e para outras espécies de animais.
No século XVIII, Jeremy Bentham, filósofo e jurista que influenciou em muito o nosso pensamento, já havia refletido sobre o assunto no seu célebre livro “An Introduction to the Principles of Morals and Legislation” (1789) registando o seguinte:
“Pode chegar o dia em que a parte não humana da criação animal adquira os direitos que jamais poderiam ser retidos dela, exceto pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que a negridão da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, sem reparação, aos caprichos de um atormentador. Talvez algum dia se reconheça que o número de pernas, a pelagem da pele ou a posse de uma cauda são razões igualmente insuficientes para abandonar ao mesmo destino uma criatura que pode sentir? O que mais poderia ser usado para desenhar a linha? É a faculdade da razão ou a posse da linguagem? Mas um cavalo ou cachorro adulto é incomparavelmente mais racional e conversável do que uma criança de um dia, uma semana ou até um mês de idade. Mesmo que não fosse assim, que diferença isso faria? A questão não é eles podem raciocinar? Ou eles podem falar? Mas eles podem sofrer?”
Culturalmente, sofremos de um processo de dessensibilização para o sofrimento dos animais, deixámos de olhar para eles e por eles, crendo que são meros autómatos e que nada sentem. Mas irremediavelmente essa é das maiores mentiras em que nos fizeram acreditar. Bastará observar, por meros segundos, a angústia e sofrimento sentido pelos animais a serem encaminhados para o abate e das mães a serem separadas dos filhos.
Os animais sentem e são conscientes do que os rodeia, muitos até conscientes de si, nutrem sentimentos e emoções tal qual as nossas, alegria, felicidade, tristeza, ciúme, aflição, dor, entre outros. Por vezes até conseguem sentir mais do que nós, existindo casos de solidariedade e compaixão entre espécies diferentes e que não imaginaríamos que convivessem.
Voltaire, que contestou, em várias das suas obras, o abate e consumo insensível dos animais, em resposta a Descartes, filósofo que defendia uma visão predominantemente especista, escreveu:
“Que ingenuidade, que pobreza de espírito, dizer que os animais são máquinas privadas de conhecimento e sentimento, que procedem sempre da mesma maneira, que nada aprendem, nada aperfeiçoam!
Será que é porque falo que julgas que tenho sentimento, memória, ideias? Pois bem, calo-me!
Vês-me entrar em casa aflito, procurar um papel com inquietude, abrir a escrivaninha, onde me lembra tê-lo guardado, encontrá-lo, lê-lo com alegria. Percebes que experimentei os sentimentos de aflição e prazer, que tenho memória e conhecimento. Vê com os mesmos olhos esse cão que perdeu o amo e procura-o por toda a parte com ganidos dolorosos, entra em casa agitado, inquieto, desce e sobe e vai de aposento em aposento e enfim encontra no gabinete o ente amado, a quem manifesta sua alegria pela ternura dos ladridos, com saltos e carícias.
Bárbaros agarram esse cão, que tão prodigiosamente vence o homem em amizade, pregam-no em cima de uma mesa e dissecam-no vivo para te mostrarem suas veias mesentéricas. Descobres nele todos os mesmos órgãos de sentimentos de que te gabas. Responde-me maquinista, teria a natureza colocado nesse animal todos os órgãos do sentimento sem objetivo algum? Terá nervos para ser insensível? Não inquines à natureza tão impertinente contradição.”
Os animais selvagens, domesticados e domésticos sentem como o animal humano. Não reagem de igual forma a certas coisas porque não sabem o que são e provavelmente essas coisas nada lhes servem. Experiências científicas que colocam um animal em frente de uma máquina e que se lhe pede para colocar a máquina a funcionar, obviamente não resultará, tal como não resultaria se tentássemos o mesmo com uma criança de dois anos que não sabe que aquilo é uma máquina e a sua finalidade.
Para reagirmos adequadamente, temos que saber que algo é esse e que nos servirá para outro algo em que nos identifiquemos. Mas, infelizmente, foram feitas muitas experiências assim, concluindo que os animais não eram conscientes e sencientes. A experiência foi mal feita, claro.
Na verdade, os animais não têm que saber tudo o que nós sabemos para serem respeitados de igual maneira, tal como nós não temos que saber o mesmo do que eles, nem tão pouco o mesmo do que outro semelhante nosso sabe para sermos respeitados.
Vulgarmente se crê que dominamos as espécies domesticadas, pena é não ser comum saber que os animais domesticados não são só os cães, os gatos e os animais de quinta, também os humanos se autodomesticaram para viver em comunidade, pois a domesticação não é mais do que domar as agressividade e aperfeiçoar a docilidade. Não podemos assim afirmar que as espécies domesticadas são um produto para nosso consumo. Reflita-se que durante a primeira domesticação dos cães, os genes que neles se modificaram coincidem com os genes que estavam a modificar-se nos humanos, incluindo na digestão. E até a desejada simpatia também é um resultado da domesticação. [2]
A preocupação em dignificar e proteger o estatuto dos animais não humanos tem percorrido séculos, mas parece que são os dias de hoje que começam a ter algum do impacto levando mais longe esta justa corrente.
Muitas pessoas se insurgem pelos animais e pelo planeta, olhando finalmente para a derradeira verdade de que somos só mais um organismo vivo neste planeta, coexistindo com os demais e todos merecemos viver e usufruir de liberdade.
[1] “Rei dos animais, como o próprio homem se descreve, eu devo dizer que sim, és o rei dos animais. És o maior que, além de ajudá-los, se aproxima deles para que eles possam gerar filhos que saciem seu paladar, assim criando sepulturas para todos os animais. (…) E devo dizer mais, se me for permitido dizer toda a verdade, você não acha que a natureza já produz alimentos o suficiente para que se satisfaça? E se não estás contente, saibas que ela oferece tanta diversidade que lhe permite criar uma infinita combinação de ingredientes.” Citações de Leonardo da Vinci publicadas na obra “Quaderni D’Anatomia – I-VI”, preservada pela Biblioteca Real de Windsor. Ove C.L.Vangensten, A. Fonahn, H. Hopstock. Christiana: J. Dybwad. Edição de 1911-1916.
[2] SAFINA, Carl, Para lá das Palavras: O Que Pensam e Sentem os Animais, Relógio D´Água Editores, novembro de 2016, p. 260, ISBN 978-989-641-660-7.
* publicado na WegganMag de maio
(CM)