O meu cão não é meu. O meu cão faz parte de um grupo restrito ao qual dou muito amor e do qual também o recebo. O meu cão é da minha família.
Mas o meu cão, há anos atrás, foi o cão de alguém que o considerava sua propriedade plena. Por ser sua propriedade, podia deixá-lo à fome durante vários dias e, como não tinha muito jeito para o pretendido, foi abandonado. O meu cão não tem jeito algum para caçar ou para guardar.
Mas a verdade é que o meu cão tem imenso jeito a ser cão. O meu cão tem muito jeito em ser quem é.
É o cão mais meigo e especial que conheço, é o cão que conheço que salta mais alto, é o cão mais eclético que conheço, é o cão mais trapalhão que conheço, é o cão que me roeu a mesa da cozinha, é o cão que fez muitos xixis e outras coisas que tais em casa, é o cão que ladrava imenso aos vizinhos e às vizinhas que passavam nas escadas, é o cão que me fez ter algumas discussões com o meu companheiro porque tinha arranjado “um problema”, é “o problema” que o meu companheiro actualmente adora, é o cão que quando via alguém que não conhecia quase me fazia cair porque queria fugir, é o cão que durante mais do que um ano não podia passear com normalidade, é o cão que me espera todos os dias, é o cão que me lambuza de lambidelas na chegada a casa, é o cão que espera que vá para a cama para se aninhar junto à minha barriga. O meu cão tem muito jeito a ser quem é, mas não é meu.
O meu cão agora tem um nome: Xico da Vila. Mas nem sempre foi assim, antes se tinha nome não lhe serviu de muito.
O Xico foi encontrado, por uma associação, nos arredores de uma localidade, numa estrada deserta, em pele e osso, e não se deixava apanhar, pois claramente isso significaria para ele ficar novamente à mercê da maldade humana.
No primeiro ano em que esteve connosco, não podíamos falar um pouco mais alto, tínhamos de ter cuidado com os gestos e não podíamos passeá-lo para sítios muito movimentados e com muitas pessoas.
É desolador e impossível descrever num parágrafo os efeitos que os maus tratos e o abandono têm num animal. Tremia, chorava, aninhava-se num canto com medo.
Aliás, ainda não podemos ir para qualquer sítio, porque o Xico tem medo de pessoas. O Xico não é agressivo para quem não conhece, mas foge, ladra e se não encontrar um lugar para fugir, aninha-se como se estivesse a esconder.
O Xico é família e deveria ser família para quem o abandonou, mas não o foi.
Chega a época das férias e quantos animais de alguém serão abandonados, sem mais. São abandonados porque as pessoas acham que estes seres são plenamente seus. Mas os seus animais não são delas, são sim de sua responsabilidade.
Escolhemos acolher um animal, e não ter. Escolhemos proteger e cuidar de um animal, e não utilizar. Escolhemos ser responsáveis por aquele animal e por isso flexibilizar a nossa vida ao facto de agora alguém estar ao nosso cuidado.
Escolhemos nós. Escolheu o anterior detentor do Xico da Vila, mas não cumpriu com o que lhe seria esperado. Abandonou-o e presumo que o fez mais facilmente do que se fosse o seu carro ou o seu telemóvel.
Quando tomamos a opção de aumentar a nossa família, ter uma filha ou um filho, cuidar de um sobrinho ou afilhada decerto, quando algo não corre tão bem ou quando corre mal, não o vamos deixar à sua sorte na rua ou num local deserto. Muito menos o faremos se formos de férias e não conseguirmos levar essa pessoa connosco. Iremos encontrar alguém que cuide dele ou dela na nossa ausência ou arranjar alternativas para levá-la connosco.
Hoje em dia (e em dia algum) não se justifica assumir uma responsabilidade de cuidar de uma pessoa (não humana) para depois desistir e abandoná-la, porque nos é mais conveniente ou só porque está a dar algumas chatices, submetendo essa criatura a privações, sofrimento e muita angústia.
Na verdade, tento não recriminar de forma irrefutável quem abandona os animais porque quero considerar que muitos ainda não estão devidamente consciencializados para a atrocidade que cometem. A educação os moldou e a educação, ou sua falta, faz com que sejam levados a cabo muitos dos crimes que flagelam a nossa sociedade.
Claro que outras pessoas são simplesmente más e falta-lhes um pingo de empatia (seja para com humanos ou não humanos), mas julgo que estes casos são a minoria.
Por isso, não são demais as campanhas de sensibilização contra o abandono e os maus tratos a animais, a inserção da temática nos currículos das escolas e educar a população para a compaixão, porque é ela que promove um digno desenvolvimento da pessoa humana.
Acresce que quem abandona um animal não humano também o pode fazer mais tarde a um humano. Aliás, nem pensemos o impacto no crescimento e formação da personalidade de uma criança que assiste aos seus progenitores a abandonar ou a maltratar o seu cão, gato ou outro animal que está ao seu cuidado.
Que férias valem tanto para abandonar um animal que trouxemos para o nosso lar? Que mudança de casa ou de vida vale tanto ou mais do que o animal que escolhemos acolher e de nós fazer depender?
O seu cão ou o seu gato não é seu, é uma parte da sua família. É uma parte das suas responsabilidades e, se deixar, será parte das suas alegrias e sucessos. Não são perfeitos, tal como nós também não o somos. Por isso, o seu animal, que nunca o abandonaria, forma consigo um par perfeito.
O meu cão não é de companhia, é uma companhia. O meu cão é meu companheiro. O meu cão é meu amigo. O meu cão não me abandonaria e eu não abandonaria o meu cão, porque o meu cão faz parte da minha vida.
Mas o meu cão não é meu.