Os acontecimentos das últimas semanas, sobretudo o impacto produzido pelos decretos executivos do presidente americano, revelam que estamos perante um período de quatro anos deveras inquietante para as relações internacionais e, desde logo, as relações transatlânticas do Ocidente europeu. Vejamos alguns aspetos desta nova conjuntura geopolítica e geoeconómica, a poucos dias das eleições gerais alemãs.
1. Em primeiro lugar, tudo leva a crer que vamos assistir a uma revisão do messianismo americano no mundo, do seu excecionalismo como potência imperial incumbente e, doravante, com menos força de lei e mais lei da força.
2. Em segundo lugar, tudo leva a crer que vamos assistir a um declínio do multilateralismo pós-2ª guerra sob dominação americana, pois fora deste sistema de poder ocidental há uma maioria global, pouco homogénea, é certo, que contesta e disputa o domínio ocidental. Neste sentido, uma das manifestações desta disputa diz respeito à tentativa de, no âmbito dos BRICS+, se promover a desdolarização da economia internacional.
3. Em terceiro lugar, e por mais paradoxal que pareça, estamos a assistir ao regresso em força da política bruta, legitimada por um ato eleitoral, e assente numa diplomacia transacional feita de força, ameaça e medo, à qual se associa uma revolução tecnológica de carácter libertário contra o politicamente correto e onde já nem o céu é o limite.
4. Em quarto lugar, e como ilustração do que acaba de ser dito, a relação transatlântica no quadro da OTAN corre o risco de se assemelhar, cada vez mais, com o antigo Pacto de Varsóvia. Muda a relação entre os aliados tradicionais por causa dos custos excessivos do multilateralismo ocidental. Vista do lado americano, esta ordem internacional não nos interessa, é muito cara para nós, ou então, em alternativa, manda quem paga.
5. Em quinto lugar, vamos assistir a uma aliança nova entre o poder e a riqueza no interior mesmo das instituições de governança americana, tendo em vista projetar o espaço vital dos tecno-plutocratas, mais transacional e mais assimétrico, através da utilização da força bruta, do capitalismo financeiro e do capitalismo de vigilância.
6. Em sexto lugar, e perante o fim da mundialização feliz, em consequência do fogo cruzado das retaliações aduaneiras, comerciais e regulatórias, qual será a medida certa da reação europeia ou, talvez melhor, da antecipação europeia? Basta lembrar que a Alemanha depende, ao mesmo tempo, da Rússia por causa da energia, dos EUA para a defesa e segurança e da China para o mercado das suas exportações. Um desafio geopolítico e geoeconómico de grande exigência para a economia alemã e europeia.
7. Em sétimo lugar, estamos a assistir ao fim do modelo normativista europeu assente no soft power da União Europeia. Doravante, a segurança e a soberania europeias dependerão menos de tratados diplomáticos e mais de decisões económicas geoestratégicas, ou seja, as relações económicas passarão a ser filtradas pelo critério da segurança e a associação entre política económica e segurança coletiva será a trave-mestra da política de autonomia estratégica da União Europeia, tendo em vista reduzir as nossas vulnerabilidades como zona de impacto e multirrisco.
8. Em oitavo lugar, a União Europeia passará, ao longo do ano, por momentos de grande instabilidade política e governativa interna e, sobretudo, terá de investir mais numa cultura de buffer institutions e estruturas de missão, isto é, numa governança multirrisco nas áreas da energia, ambiente, transição digital e IA e respetiva regulação, pois é para aí que convergem os principais problemas de concorrência internacional no futuro próximo.
9. Em nono lugar, parece estar em causa o racional democrático da representação política (o papel do congresso americano) trocado pelo fascínio da representação espetacular das ordens executivas e a intermediação das redes sociais como espaço público privilegiado de comunicação política, para lá da legitimação política que as eleições livres concederam a um sistema de governo autoritário e tecno-libertário.
10. Por último, vamos testemunhar, muito provavelmente, um nó democrático (Marcel Gauchet) e um dilema do prisioneiro que podem ser descritos nestes termos: a democracia reconhece os desafios, as lacunas e os erros cometidos, mas é incapaz de os resolver, muito menos os défices estruturais. A democracia parece estar num impasse, a política captura a sociedade e esta é impotente para ultrapassar a incompetência da política. Os dois países do diretório europeu, Alemanha e França, ilustram bem este nó democrático.
Como diz o ditado “os EUA inovam, a China replica e a Europa regula”. O desafio europeu, a poucos dias das eleições alemãs, pode ser expresso através de um compromisso, que desejamos virtuoso, entre inovação digital, transição verde e segurança coletiva, num quadro internacional onde irá prevalecer o realismo político e o cinismo diplomático, com impacto sobre toda a estrutura de custos europeia e sua competitividade.
Artigo publicado no Jornal de Notícias.
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