Mark Hibbs prepara-se para apresentar um ‘briefing’ perante o Governo britânico, que está “visivelmente preocupado com o que está a acontecer na Ucrânia” e que tem “trabalhado com o Executivo ucraniano em certos assuntos da segurança nacional e das instalações nucleares no país”. São preocupações partilhadas com a União Europeia, porque, “se algo acontecesse numa daquelas centrais nucleares, aconteceria no jardim das traseiras da Europa, em casa”, conta o investigador e representante em vários programas de energia nuclear, em entrevista ao Expresso. As repercussões possíveis são já conhecidas. Ninguém esquece o ano de 1986 e o impacto profundo do desastre nuclear em Chernobyl.
Membro sénior não residente no Programa de Política Nuclear da Fundação Carnegie, Mark Hibbs lembra como os investimentos europeus mudaram desde esse momento. “Muitos países decidiram, por causa do acidente em Chernobyl, deixar de ter energia nuclear. Um deles foi a Alemanha, outro foi a Itália. Outro país que decidiu, numa fase inicial, não continuar com a energia nuclear foi a Bélgica. Por isso, o impacto daquele acontecimento foi grave.”
Que nenhum país europeu quer ver Chernobyl a acontecer de novo é inquestionável. Mas esse não é o único motivo pelo qual, na costa de Flamanville, uma cidade industrial no noroeste da França em frente ao Canal da Mancha, um dos reatores nucleares mais poderosos do mundo continua sem fornecer energia. A construção está atrasada em mais de dez anos, apesar de os investimentos acima do orçamento rondarem os 12 mil milhões de euros. Mais uma vez, os planos para o começo das operações foram adiados para 2024. E França não é caso único, já que a mais recente central nuclear finlandesa, que iniciou a atividade há um mês, deveria ter estado pronta em 2009.
DO ‘BOOM’ DO NUCLEAR AO ABANDONO QUASE TOTAL
“Vimos, durante o período que começou nos anos 1960 e se estendeu até à década de 1990, quando houve uma significativa construção de infraestruturas nucleares – e isto é verdade para o Japão, aplica-se aos Estados Unidos da América (EUA) e à Europa de leste -, muitos países e empresas envolvidos nisto aprenderam a construir reatores de forma muito eficiente e rápida. Foram instaladas muitas centrais nucleares num período muito curto de tempo.” Nos Estados Unidos da América, em duas décadas, foram erguidas mais de cem destas centrais. No Japão, foram mais de 50. Em França, também. Na Alemanha, foram construídas mais de 20. Mark Hibbs diz que estes anos constituíram o ‘boom’ da energia nuclear. Depois disso, a tendência foi sempre a descer, e por uma grande variedade de motivos.
A construção de centrais nucleares foi limitada aos mínimos depois dos finais da década de 1990, devido ao abalo causado pelo acidente em Chernobyl e da memória do desastre em Three Mile Island, nos EUA, praticamente uma década antes, mas também à desregulação muito expressiva dos mercados de eletricidade na Europa. “Isso colocou a energia nuclear numa posição desvantajosa”, admite Mark Hibbs. Só que, a somar-se a isso, houve ainda uma queda acentuada na procura da eletricidade. A Alemanha, a título de exemplo, começou, por essa altura, a virar-se para o gás natural. “Nos anos 1990 e 2000, a pouco e pouco, com a desregulação dos mercados da eletricidade, vimos o gás natural a expandir-se. No caso da Alemanha, isso levou a que se alterasse a procura e que o país se tornasse dependente das importações de gás natural, particularmente aquele que é proveniente da Rússia.”
Os planos para a construção de centrais nucleares encareceram progressivamente, durante todo este processo. “Estamos a viver com as consequências disso agora”, vaticina o representante do Programa de Política Nuclear da Fundação Carnegie. Hoje, os planos para erigir centrais nucleares são “muito demorados”, o que significa que o dinheiro fica “empatado” por muito mais tempo, descodifica o investigador. O retorno para projetos destes só chega ao fim de, em média, 20 anos, em contraste com os depósitos de gás natural, que podem fazer lucros quase de forma imediata. Em poucos anos, o retorno do dinheiro aplicado começa a entrar.
UMA GERAÇÃO SEM ENERGIA NUCLEAR
Sem motivos para investir, as grandes empresas especializadas nas infraestruturas necessárias para os reatores nucleares – sediadas sobretudo na Alemanha e na Suíça – retiraram-se do mercado europeu. Apenas uma empresa da indústria francesa se manteve em solo europeu, “mas é como se se tivesse esquecido de como se montam estruturas destas a tempo e a baixo custo”, espanta-se Mark Hibbs, que fala em adaptações à rede de distribuição, logística e conhecimentos adquiridos. Havia problemas técnicos com os projetos, e já nem tudo eram facilidades na interface entre os reguladores e os governos, desde que os acidentes nucleares se deram. “Tudo passou a ser mais complexo e mais difícil de gerir. As exigências da indústria, para garantir sustentabilidade e segurança, aumentaram. Tanto em França como na Finlândia, as dificuldades são muitas, e isso fez com que as construções se arrastassem ao longo de anos.”
A Comissão Europeia, porém, fez avançar um plano para fomentar o desenvolvimento de projetos nucleares no espaço da UE. “Há a expectativa de que, a curto prazo, haja um investimento por parte dos governos e por parte do setor privado. Isso poderá acontecer, mas a questão é quão cedo. Porque temos visto que a indústria na Europa está com falta de prática.” Mark Hibbs garante que os Estados europeus não reiniciarão este processo com a “capacidade, logística, gestão, coordenação, experiência e cadeia de distribuição” necessárias para o fazer com agilidade. Muitos anos se passaram sem que a matéria dada fosse revista. “Fizeram-no nos anos 1970 e 1980 e é como se tivessem de reaprender e de rever os mesmos passos para reinventar a roda, de uma certa forma”, analisa o investigador.
Como o ‘renascimento’ da energia nuclear não ocorrerá de forma imediata, a Comissão Europeia e a UE ver-se-ão “desafiadas”. Em causa está a regra proposta aos Estados-membros e ao Parlamento Europeu que aceita e acolhe a energia nuclear como uma fonte transitória durante um período curto de tempo. “Não é, no entanto, claro que, no horizonte de 2040 e 2050, a União Europeia apoie a energia nuclear desta forma transitória, apesar de esta ser definida pela Comissão como uma ‘energia de ponte’ para as renováveis. Essa é uma grande dúvida.”
“ENERGIA NUCLEAR? SEM DÚVIDA”
A consulta da documentação cedida pela Comissão Europeia e respetivo Parlamento para suportar esta regulação permite aferir que, por causa das dificuldades em substituir o gás natural e, por causa da dificuldade de implementar energias renováveis rapidamente, durante 15 ou 20 anos, a UE terá de se apoiar na energia nuclear para pelo menos 15% das suas necessidades energéticas. Este número foi calculado tendo em conta os cortes de emissões de dióxido de carbono estipuladas para 2050. Mark Hibbs alerta, no entanto, que as licenças se expirarão entretanto. É possível que durante os próximos dez ou 20 anos pelo menos metade da capacidade do setor nuclear se perca, por causa destes prazos.
“Uma das opções que os países terão para gerar energia suficientemente livre de emissões, de forma a atingir as metas para 2050 [zero emissões de carbono], é estender os tempos de vida dos reatores, mas isso implica investimentos consideráveis”, explica o especialista.
Nos próximos dez ou 20 anos, os países que já tiveram a ‘experiência nuclear’ serão os que mais apostarão nesta fórmula: o Reino Unido, a França, a Bélgica, os Países Baixos, Itália, a Finlândia, República Checa e Checoslováquia. Também a Bulgária, a Roménia e a Polónia estão a posicionar-se para fazer a aposta na energia nuclear e construir centrais.
O ESTRANHO CASO DE UMA ALEMANHA DE FORA E “EM APUROS”
Quando a Alemanha determinou a construção de 20 centrais nucleares, recorreu à empresa Siemens, que hoje se retirou desta indústria. Se a Alemanha quisesse atualmente contar com a energia nuclear, teria de contar com negócios estrangeiros. Mas a maior economia europeia é um estranho caso de “negação”, segundo Mark Hibbs. “Parecem não ter percebido que a exigência de produção de eletricidade limpa, em 20, 30, 40 anos, será para eles um grande problema. Neste momento, produzem uma grande quantidade de eletricidade com gás e carvão. Querem substituí-los por fontes renováveis como o vento, e, em alguma medida, o sol.” O investigador ressalva, contudo, que a realidade dos últimos anos na Alemanha contraria as melhores expectativas.
“A expansão da capacidade energética renovável chegou ao limite. Estão a encontrar oposição local, têm dificuldade em encontrar matérias-primas para a produção de equipamento, precisam de mais conhecimento e têm problemas com o financiamento.” A gota de água é a decisão das instâncias superiores de remover toda a dependência das importações russas, que obriga a um investimento avultado em estruturas próprias. “Estão em apuros. Tinham decidido retirar toda a energia nuclear, depois do acidente nuclear de Fukushima, de 2011. As últimas três unidades encerraram este ano.”
UE VAI AUMENTAR CONSUMO DE ENERGIA
As previsões apresentadas pela União Europeia não apontam para uma descida dos gastos de energia, mas sim para subidas, durante as próximas décadas. Devido à maior necessidade de eletrificação para produção de baterias, para apostar em carros elétricos e para investir no hidrogénio como fonte de energia, os geradores terão de trabalhar com maior intensidade. Mark Hibbs esclarece que o recurso à energia nuclear ajudará a dar resposta a tamanhas demandas, apesar de o investimento ser elevado e de haver outras dificuldades inerentes.
“Não é ainda evidente como reagirão os governos e como acolherão este risco. Há projetos europeus que não têm sido aceites pelos países por não serem sustentáveis de um ponto de vista financeiro ou por constituirem um risco. Há também questões levantadas pela regulamentação europeia acerca dos desperdícios que resultam da atividade das centrais. É uma negociação a ser feita…” Mark Hibbs levanta ainda uma questão proeminente: a opinião pública. “Vemos que, em situações em que as populações são muitos voláteis, a opinião acerca destes temas pode mudar. Se pressionarem os governos, essas decisões podem ser revertidas. Já vimos isso em muitos países, porque não é um ambiente em que os investidores se sentem confortáveis, sobretudo se a instalação de um projeto se prolonga durante décadas.”
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL