Odia está quente, até um pouco desconfortável para usar todas as camadas de tecido polar que os militares costumam precisar para as longas vigílias nos checkpoints à volta de Kiev. “É o primeiro dia realmente agradável desde o início do ano”, diz Oleg Sentsov, cineasta ucraniano e ex-prisioneiro de consciência na Rússia, quando chega à Praça da Independência, ou apenas “Maidan”, como ficou conhecida depois dos protestos de 2013 e 2014 que levaram à demissão do governo do Presidente Viktor Yanukovych, próximo do Kremlin.
Senta-se nas escadas principais e olha em frente, para as barricadas do exército, um cenário que lhe lembra os dias em que esta praça foi palco da maior revolução da história da Ucrânia desde que o país ganhou a sua independência da antiga União Soviética, em 1991. “Durante três meses eu vivi aqui, numa tenda, ali ao fundo”, diz, e aponta para uma clareira de relva à direita de quem olha de frente para o monumento central da praça, construído para celebrar a independência.
Durante três meses e dois dias, Maidan foi a casa de milhares de pessoas. Nasceram cozinhas comunitárias, um estúdio de televisão, montaram-se palcos para conferências, debates, médicos e padres passaram a viver no local ou a visitar diariamente o cerco auto-imposto por quem saiu para a rua protestar por uma Ucrânia mais próxima da União Europeia. Oleg Sentsov, agora com 45 anos, veio de Simferopol, na Crimeia, onde nasceu, para se manifestar, deixou a filha, na altura com 11 anos, e um filho, com 10, sem saber que este protesto viria a tornar-se tão longo e tão modificador da sua vida.
“A minha mãe perguntou-me se eu achava bem ir para um sítio tão violento, se não pensava nos meus filhos e eu disse-lhe que se não fosse, no futuro eles seriam habitantes de um país de escravos”. Aqui, continua Oleg, “construímos um novo país”. Para quem aqui esteve, o caminho da Ucrânia como país com uma noção clara do seu lugar do mundo começou nesta praça. “Temos uma longa história, mas até esse momento éramos escravos da Rússia, com políticos lacaios do Kremlin, que por sua vez sempre tratou a Ucrânia como um cãozinho a quem podia dizer o que fazer e como se comportar”.
“DE NOITE ÍAMOS PÔR BANDEIRAS UCRANIANAS NO TOPO DOS EDIFÍCIOS OUTRA VEZ”
“Daquela esquina, onde estão agora os sacos de areia, atirei muitos cocktails molotov contra os canhões de água que nos queriam dispersar”, diz, a apontar para o monumento aos fundadores da cidade de Kiev. Logo após a queda de Viktor Yanukovych, uma semana depois da morte de mais de 100 pessoas na colina que leva ao parque Mariinsky, por trás da praça, a Rússia já tinha tomado os principais edifícios governamentais da Crimeia. Foi para aí que Oleg se dirigiu. “Durante dois meses fui ativista, não fiz nada de revolucionário, não era rebelde de forma aberta, porque esses eram mortos. De noite íamos pôr bandeiras ucranianas no topo dos edifícios outra vez, pintámos cartazes e paredes com as cores da Ucrânia, coisas assim”.
A 10 de maio de 2014, 10 homens vestidos à civil prenderam-no à porta de casa, levaram-no de venda para um local isolado e torturaram-no para saber onde estavam os restantes membros do grupo de ativistas a que Oleg pertencia. “Também queriam que eu fizesse um vídeo a fazer a ligação entre o Governo e os supostos ataques terroristas para provar que o nosso governo era terrorista”. Diz que nunca revelou nada.
“É difícil aguentar aquilo tudo, mas pensei no que vivemos aqui, pensei na minha família, pensei nas pessoas que morreram nesta praça e acho que foi isso que me manteve sem quebrar, não podia falhar-lhes dessa forma”. Ainda assim, muitos sofreram o mesmo destino que o agora “soldado simples, sem outra profissão”, como se descreve: foram presos, todos separados por várias prisões russas.
GREVE DE FOME E A NOVA VIDA COMO SOLDADO
O seu julgamento, em agosto de 2015, foi considerado ilegal pela Amnistia Internacional por ter decorrido num tribunal militar mas ainda assim Oleg foi considerado culpado de “conspiração para cometer atos terroristas” e condenado a 20 anos de prisão. Esteve cinco anos e meio numa colónia penal do Círculo Polar Ártico e entre maio e outubro de 2018 manteve uma greve de fome que acordou o mundo para a situação dos presos políticos da Crimeia. Chegou a pesar 30 quilos mas ao fim desses mais de 140 dias, com a saúde no limite, os guardas disseram-lhe que se não começasse a comer iam alimentá-lo à força, e ele voltou a comer. Em setembro de 2019 voltou para casa, numa troca de prisioneiros.
No primeiro dia da invasão da Rússia, juntou-se às Brigadas Territoriais de Defesa, e as primeiras duas semanas ficou de piquete nos checkpoints que fatiam as ruas até à entrada em Kiev mas depois seguiu para a linha da frente, e lutou pela recuperação das cidades de onde agora nos chegam as imagens mais duras desta guerra. “Entrei em Bucha, Borodyanka, Ivankiv, todos esses sítios, para expulsar os russos, entrei logo a seguir a eles e vi todas essas atrocidades que todos vocês viram, claro”. Não são mentira, reforça, e acrescenta, com ironia. “Não tivemos tempo para isso. No primeiro dia em que entrámos as fotografias foram logo reveladas ao mundo, até lá essas cidades tinham estado ocupadas, não tivemos tempo para proceder à troca de roupas, amarrar as mãos, etc”. Para Oleg, os russos não estão a proceder à “desnazificação” da Ucrânia e sim à sua “desnucrainização”.
“O Medvedev disse ontem ou anteontem que a Ucrânia não tem razão de existir e é por isso que estamos a sofrer este ataque, esse sim fascista, por parte da Rússia”, diz, numa referência ao ex-presidente e ex-primeiro ministro da Ucrânia que escreveu recentemente um texto a negar todas as acusações de perpetração de crimes de guerra que têm sido dirigidas ao exército russo. “Nesta guerra não temos escolha, se vamos ganhar ou se vamos morrer, mas depois de Bucha, depois destas atrocidades, não é possível negociar. A capitulação da Rússia é a única solução”, diz.
Como é que esta guerra acaba? “Não pode acabar sem o Putin a ser julgado, sem a destruição do seu regime porque senão for assim ele nunca nos deixará viver de acordo com as nossas escolhas e um país não pode andar sempre a definir as suas fronteiras e em guerra por elas, estas são as nossas, e o Donbas e a Crimeia também”.
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL