Na década de oitenta e década de noventa, existia um programa familiar na RTP 2, tendo depois transitado para o Canal 1, chamado “Arca de Noé”, que fez tamanho sucesso. Qualquer pessoa, independentemente da idade, sabia cantarolar a música de abertura[1]:
“Vamos fazer amigos entre os animais / Que amigos destes não são demais na vida / Que vêm aqui mostrar / Que têm uma família como eu e tu / Só que esta mora numa outra casa / Que se chama (Digam! )/ Arca de Noé! / Vamos lá ver como é / Arca de Noé / Há animais que falam como nós / Como eu e tu.”
É uma música que não sai da cabeça quando a ouvimos, tem um conteúdo simples, mas também completo. Será que os seus autores queriam dizer o que eu acho que queriam dizer?
Porque claro, é óbvio que os animais têm sentimentos. Mas parece que, durante muito tempo, optámos por querer que não fosse assim para nosso bel-prazer, para nosso conforto e não confronto, procurando não sentir aquele “peso” na consciência.
Consciência que temos. Consciência que os animais não humanos têm.
No entanto, a comunidade científica sentiu a obrigação de esclarecer o resto das pessoas sobre este assunto, dado que não havia quem falasse disso, com a justa seriedade, nem quem agisse em conformidade. No fundo, à sua maneira, vieram dizer “são animais como eu e tu, que falam como nós”, tal qual a música que cantarolávamos.
E pois assim, no dia 7 de julho de 2012, em Cambridge, no Reino Unido, um grupo internacional de reconhecidos cientistas[2], proclamou publicamente a Declaração de Cambridge sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos[3], pela qual se afirma que também os animais não humanos têm experiências e reagem a essas experiências positiva ou negativamente.
Este grupo de proeminentes afirmou que os animais humanos têm estados emocionais conhecidos por nós, incluindo os recompensadores e punitivos, acrescentando que até os invertebrados têm reações comportamentais de atenção, sono e tomada de decisão.[4]
Já sabíamos bem que eles são sencientes e que têm consciência, seja por nossa observação ou por experiência. Multiplicam-se histórias de animais que protegem outros, às vezes de espécie diferente e em ocasiões de perigo; salvam a vida a humanos; poupam os mais velhos; protegem os mais novos e vulneráveis; recordam, decorridos anos de afastamento, os seus companheiros, por isso, já sabíamos.
Existem manifestações de alegria, dor, tristeza, angústia, ciúme, amor, de e entre animais, que são muito semelhantes às nossas. Nós conhecemos aqueles sentimentos, por isso, já sabíamos. Mas, ao mesmo tempo, agíamos como se não o soubéssemos.
Agora tudo será diferente, e tal como, nos primeiros anos do estudo do Direito, ensinam quando considerar o momento de vida e de morte, auxiliados por critérios da ciência médica, agora (embora seja constatar um facto óbvio, repito), sabemos que os animais (não humanos) não são nem nunca foram meros autómatos, como Descartes os concebia.
Em Portugal, com a entrada em vigor do (novo) estatuto dos animais, aprovado pela Lei n.º 8/2017, de 3 de Março, foi aditado o artigo 201º- B ao Código Civil, passamos a entender os animais como “(…) seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza”.
Porque detêm sensibilidade, esta norma procura dar-lhes maior liberdade face à atividade humana, ou seja, confere-lhes direitos. E fá-lo no pressuposto de que, se não vivem conforme a sua natureza, vivem em angústia ou sofrimento (porque são sencientes).
E muito embora o animal não seja, juridicamente, nem pessoa nem coisa, pois sobre ele ainda é exercido o direito de propriedade, o disposto no artigo 1305º-A do Código Civil estabelece restrições ao exercício da propriedade, tendo em conta que é um animal e, como tal, senciente, como acima referimos.
Segundo as normas deste artigo 1305º-A do Código Civil, a pessoa proprietária tem o dever de assegurar o bem-estar do animal e respeitar as características da espécie, não lhe sendo possível, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus-tratos que resultem em sofrimento injustificado, abandono ou morte do animal. Desta leitura, facilmente percebemos que se converge para a mencionada proteção do animal (não humano) em virtude da sua natureza.
Mesmo assim, continuam a ser perpetrados atos que afrontam a natureza dos animais não humanos, selvagens ou domésticos, sujeitos à sorte e à ação humana. Justo seria que esses animais fossem protegidos, como a própria norma positiva, em função da sua natureza, e assim, livres de quaisquer atividades anti-natura.
Mesmo que assim ainda o seja, os anos que virão serão mais gloriosos para todos os animais, sejamos nós ou eles, e a “prova provada” está nos avanços na legislação internacional e nacional, reconhecendo a senciência dos animais não humanos.
Redigo que, no fundo, já o sabemos há muito tempo, os animais são como eu e tu.
[1] De José Jorge Letria/Carlos Alberto Moniz
[2] neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e neurocientistas computacionais cognitivos
[3] http://fcmconference.org/img/CambridgeDeclarationOnConsciousness.pdf
[4] “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”.