O dia trouxe nevoeiro e há ondas de sete metros. Da Culatra mal se vê o farol da Ilha do Farol, que fica a pouco mais de três quilómetros. Numa madrugada como esta “ninguém arriscaria atravessar”. Por isso, Vítor Argel, 78 anos, está sentado com outros pescadores numa das esplanadas do lado da ria Formosa. Nenhum deles foi para o mar. Talvez alguém vá durante a tarde.
“O desgraçado do meu pai foi daqui para Marrocos.” Vítor ouviu pela mãe a história do pai. Vezes sem conta. Mas há muitos anos que ninguém sai dali para Marrocos. O pai dele e todos os outros atiraram-se às águas onde o Mar Mediterrâneo e o Atlântico se misturam. Foi em 1943, quando o mundo vivia uma guerra mundial pela segunda vez e em Portugal um regime ditatorial obrigava os homens a cumprirem serviço militar. “Os daqui também foram para o mar e iam à procura de uma vida melhor. Os que vêm agora lá de Marrocos também estão à procura de uma vida melhor. Mas chegam aqui e uns são capturados e outros não.”
A partida do pai para o outro continente aconteceu antes de Vítor nascer. “A minha irmã mais velha já tinha uns dois anos.” O pai saiu de barco à vela e quando chegou a Marrocos arranjou logo trabalho mas nem todos tinham a mesma sorte. “Houve colegas dele que não conseguiram arranjar trabalho lá e denunciaram aqueles que estavam a trabalhar. Foram para a cadeia de Marrocos e acabaram na cadeia de Olhão.”
Culatra e Farol, Faro. Foto D.R. Ruben Tiago Pereira
Naqueles tempos era normal fazer-se a travessia. “Os barcos saíam de Olhão, saíam de todo o lado. Íamos daqui para África à procura de um melhoramento de vida. É o mesmo que eles fazem. No país deles são maltratados e roubados. Nós fomos para França e Alemanha mas legalizados e eles vêm clandestinos. O problema é esse.”
NÓS QUE SOFREMOS NA PELE ISSO NÃO VAMOS SER CONTRA ESTAS PESSOAS
Na ilha da Culatra, em Faro, a população não chega aos mil. Qualquer pessoa nova que aparece é notada. Assim que o Expresso chegou à ilha, por exemplo, já sabiam quem éramos e quem procurávamos. Os barcos estão todos no porto de abrigo e os homens sentados no café à conversa. É lá que se encontra Rui Conceição: em 2008, um familiar seu deu de caras com um grupo de homens que encalharam na praia da Culatra, do lado mar – e que depois saltaram do barco e começaram a fugir. “O meu familiar nunca quis falar sobre o assunto nem dar entrevistas. E agora também já tem alguma idade.”
Esse foi o primeiro desembarque de migrantes marroquinos de que há memória em Portugal. “Nesse dia eu estava no mar e estava muito calminho. Possivelmente até terei passado por eles mas não vi nada, não dá para distinguir se são migrantes ou pescadores”, recorda Rui Conceição. A capitania foi avisada e os homens foram detidos. “Não é algo que nos preocupe. Também temos de nos lembrar que os portugueses também são emigrantes. Nos anos 60, 70 e 80 muitos saíram de Portugal. Daqui da Culatra, por exemplo, um cunhado meu saiu com a família para França. Nós que sofremos na pele isso não vamos ser contra estas pessoas.”
Rui Conceição, pescador. Foto D.R. Ruben Tiago Pereira
Entre 2008 e 2019 não mais se ouviu falar em barcos vindos de Marrocos a entrar sem autorização em território português. Foi assim até que em setembro de 2019 isso mudou: chegou à praia de Monte Gordo uma embarcação de sete metros com oito homens a bordo.
Quando Paulo Gonçalves chegou à porta do seu café à beira da praia de Monte Gordo, a história já corria: um barco com migrantes tinha encostado a poucos metros dali. “Foi mesmo ali à frente, logo a seguir aos chapéus de sol da concessionária”, diz com o braço esticado a apontar. Quase dois anos depois do acontecimento – foi a 11 de dezembro de 2019 -, o proprietário do “Restaurante-bar Agostinho” recorda que desceu até ao areal e caminhou junto ao local. Ainda não era hora de almoço.
“A embarcação tinha uns sete metros. E lá dentro havia uns saquinhos, que eu acho que seriam de roupa. Mas havia muito pouca coisa.” Quase ninguém os viu, mas foram os suficientes para alertar as autoridades. Ainda era de madrugada quando chegaram à praia e desembarcaram. “Não é normal um barco tão pequeno encostar daquele lado, junto aos pescadores, ainda por cima não tinha a matriz portuguesa e os nossos pescadores perceberam isso.”
Por uns dias o acontecimento foi assunto de conversa. “Isto é um meio pequeno e fala-se sempre muito, lembro-me que foi muito comentado. Mas o que senti na altura era que as pessoas ficaram tranquilas com aquilo, não houve medos nem receios de nada.”
Barco em que viajaram os jovens marroquinos que atracaram na praia de Monte Gordo, no Algarve, a 11 de dezembro de 2019. Foto D.R. LUÍS FORRA
OS TRÊS
A poucos quilómetros da praia de Monte Gordo, em Vila Real de Santo António, são poucas as pessoas que se lembram de um incidente bem mais recente: a 30 de março deste ano, a polícia encontrou três homens com nacionalidade marroquina a vaguear pelas ruas da cidade, não muito longe do centro de saúde. Pareciam desorientados e foi isso que os denunciou. As autoridades acreditam que pertenciam a um grupo maior – 16 ou 17 pessoas – que chegou à praia de Santo António. Como os três homens já foram detidos na rua, o caso não é considerado um desembarque.
Os lojistas não se lembram de nada e os poucos que falam sobre o assunto referem-se sempre ao desembarque de Monte Gordo, em 2019, e não a este de 30 de março de 2021. “Aqui? Em Vila Real? Não me lembro de nada.”
O centro de saúde fica a poucos metros de um mato cujo caminho termina na praia. Em cada loja ou café onde o Expresso entra e pergunta pelo caso, a resposta é muitas vezes um olhar de desconfiança. E insistem sempre: “Isso não foi aqui”. No posto da PSP, que na altura atuou também na operação, a história também não merece grande conversa e o pouco que é dito não é feito de forma oficial. Os polícias de serviço confirmam que aconteceu, que se lembram e apenas apontam que “foi lá para os lados do centro de saúde”, mais próximo da zona residencial e afastado do centro turístico.
Na mercearia em frente ao local onde foram detidos ninguém deu por nada. “O que vos posso dizer é que perdidos é que eles não andavam”, diz um homem de cabelos brancos e costas encurvadas. “Eu não vi nada do que estão para aí a dizer mas isto aqui é sempre a mesma coisa e não chegam cá de forma inocente”, continua enquanto paga. Quando sai, a empregada de balcão volta a garantir que ninguém viu o que quer que fosse. “A minha colega que faz as manhãs também não viu, se visse tinha comentado comigo. Mas olhe, isto também são pessoas que vêm para cá que nos vêm tirar os empregos.”
Também o segurança do centro de saúde não sabe de nada.
O tom mais crítico à chegada de migrantes continua à entrada de uma retrosaria. Se o dono insiste que nada sabe e rapidamente volta para dentro da loja, um outro morador recorda que esta rota que agora começa a trazer pessoas já muitas outras vezes trouxe droga. “Isto aqui sempre foi assim. A polícia é avisada e mesmo assim nunca os apanha.”
De acordo com as autoridades, houve seis desembarques nas praias algarvias. Chegaram 97 pessoas – só uma recebeu asilo em Portugal, por ser menor de idade, e há 44 cujo paradeiro é desconhecido. No entanto, nestes números não consta este caso de Vila Real de Santo António nem o resgate de 37 homens a 90 quilómetros da costa, feito pela Marinha a 11 de novembro.
OS 37
A embarcação resgatada. Foto D.R. Marinha
Foi um navio da marinha mercante que os viu. Eram 37 homens, todos oriundos do norte de África, que diziam estar há sete ou oito dias no mar. Esperavam por alguém que lhes traria combustível e nunca chegou.
Depois de ter recebido o alerta, o Centro de Coordenação de Busca e Salvamento Marítimo de Lisboa enviou de imediato duas lanchas para o local e ordenou que ao longo da madrugada de 11 de novembro a corveta António Enes deixasse a base do Alfeite, em Almada, e rumasse até ao Algarve para fazer o resgate. “Foi sensivelmente uma viagem de 14 horas. Fomos a uma velocidade para chegarmos à hora do sol nascer e conseguirmos fazer o resgate com maior segurança”, explica o comandante Ricardo Madeira Gonçalves, capitão da António Enes.
Prepararam sacos com comida e água para distribuírem pelas pessoas.
Já com a luz do sol, a corveta aproximou-se. Na embarcação de madeira os homens começaram a fazer sinais e a pedir socorro. Despiram as t-shirts e usaram-nas para bater na água e chamar à atenção. “Decidimos pôr a bordo da António Enes todas as pessoas e determinámos que a lancha faria o reboque do barco”, conta o comandante Ricardo Madeira Gonçalves. “Estavam um bocado ansiosos mas ficaram sempre sossegados durante a viagem toda. Quando começámos a avistar terra ficaram curiosos em saber para onde os levávamos. Eles não sabiam de nada e nunca dissemos para onde íamos ou quando chegaríamos. Mas, claro, perceberam que éramos portugueses.”
Traziam apenas algumas garrafas de água mas não havia comida. “Vimos alguns telemóveis, duas ou três pessoas tinham algum dinheiro”, acrescenta o capitão. “Diziam que queriam chegar a Espanha.” E, ao contrário do que é habitual, continua o comandante, não foi possível identificar se alguns dos 37 homens seria o líder do grupo ou responsável pela travessia, o traficante. “Disseram que o mestre da embarcação desembarcou logo no primeiro dia para outra embarcação e que alguém devia aparecer e dar-lhes combustível.”
Os comandantes da corveta e da lancha acreditam que o barco de madeira não duraria muito mais tempo à deriva. “Assim que o rebocámos começou logo a meter água.”
Foto D.R. Marinha
A TROCA DE BARCOS
A forma como estas embarcações com migrantes chegam à costa do Algarve é questionada – e está a ser investigada pelas autoridades. São muitos os que acreditam que as pessoas não completam toda a travessia nos barcos de madeira ou insufláveis. “Aquilo não aguenta, tem de haver um barco maior que os deixa mais perto da costa”, comentam os pescadores da Culatra.
Da mesma opinião é o presidente da Câmara de Faro. “A perceção que temos é que não vieram naquela embarcação desde Marrocos, até porque isso é impossível. Significa então que, provavelmente, vieram em barcos maiores e quando chegam mais perto mudam para esses barcos”, assinala Rogério Bacalhau. Para o autarca, que olha para os casos com preocupação, é necessário intensificar o patrulhamento, fiscalização e o acompanhamento de todos os movimentos junto à costa. “Não é um assunto que esteja na ordem do dia em termos da preocupação do cidadão comum, até porque, sendo uma região turística, recebemos gente do mundo todo. Mas é evidente que as pessoas pensam nisso e acima de tudo ficam preocupadas com os efeitos que esses movimentos migratórios podem ter”, acrescenta.
Ao Expresso, o responsável pelas operações da Marinha no Algarve admite que desde que os desembarques começaram tem havido “ainda mais cuidado, quer nas patrulhas e policiamentos, quer na monitorização da deteção de embarcações”. A costa portuguesa tem um sistema de vigilância eletrónico com radares que complementam o patrulhamento. No caso do Algarve há duas lanchas: uma para a zona do sotavento e outra para o barlavento, que diariamente saem para o mar.
Mesmo assim, as embarcações de migrantes – quase sempre de madeira ou insufláveis e com menos de dez metros de cumprimento – passam despercebidas aos radares. “O mar é imenso e, não obstante toda a monitorização, a nossa costa tem muita navegação e este tipo de embarcações é muito pequena e de madeira. Dificilmente são monitorizadas pelo sistema de radar, só se estiverem mesmo muito próximas”, explica o comandante Rocha Pacheco.
Só pelo olhar humano muito próximo é possível detetá-las.
– Notícia do Expresso, jornal parceiro do POSTAL- VEJA AQUI O VÍDEO