Cabeça inclinada para baixo,olhos cercados por hematomas, o corpo praticamente nu, apenas um par de boxers Calvin Klein a cobrir-lhe parte da pele, uma tatuagem no ombro esquerdo e sinais evidentes de traumatismo craniano. O homem que jaz, imóvel, foi encontrado em Kharkiv, no leste da Ucrânia, mas, sem um único dado conhecido, as autoridades ucranianas não tinham como o identificar. Foi então que decidiram recorrer a um método de ponta: reconhecimento facial usando a inteligência artificial.
A BBC detalha como o Clearview, o sistema de reconhecimento facial mais famoso e controverso do mundo, está agora a ser utilizado em mais de mil casos.
O QUE É O CLEARVIEW?
A empresa extraiu milhares de milhões de fotografias de plataformas sociais, como o Facebook e o Twitter, para criar um enorme banco de dados, a que o fundador chama “mecanismo de busca de rostos”. Hoan Ton-That considera que a tecnologia desenvolvida “funciona como o Google”, mas, em vez de pesquisar uma sequência de palavras ou texto, “o utilizador coloca uma fotografia de um rosto”.
O Clearview enfrentou uma série de desafios legais. Os gigantes Facebook, YouTube, Google e Twitter enviaram cartas para solicitarem à empresa a sua cessação, e pedindo que deixe de usar fotografias destes sites. O Gabinete do Comissário de Informação do Reino Unido chegou a multar a empresa por não informar as pessoas acerca da recolha das suas fotografias.
Nos Estados Unidos da América, onde a empresa está sediada, o sistema é utilizado extensivamente. Mais de três mil agências governamentais compraram ou testaram a tecnologia.
Agora, a utilização do Clearview pelas autoridades ucranianas voltou a levantar questões sobre as implicações de utilizar a tecnologia com tamanho poder durante uma guerra ativa. Após a invasão da Ucrânia, o fundador do Clearview encontrou outra aplicação para a tecnologia: não só poderá reconhecer os mortos no conflito como os prisioneiros de guerra e pessoas em fuga. Esta oferta foi prontamente aceite pelo Governo ucraniano.
UTILIDADE NO TERRENO
De volta a Kharkiv, as autoridades tiraram uma fotografia ao rosto do morto (com a cabeça erguida e os olhos fundos direcionados para a câmara). Passando a imagem pelo banco de dados do Clearview, a pesquisa resultou em várias fotografias de alguém que se parecia com o civil morto. Uma das fotografias tirada num dia quente. O homem encontrava-se sem camisa, deixando exposta uma tatuagem no ombro esquerdo.
Usar o reconhecimento facial para identificar os mortos não é novidade, e o Clearview não é a única plataforma que está a ser usada atualmente na Ucrânia.
RECONHECIMENTO FACIAL NO CONTEXTO DE GUERRA
Em 2019, plataforma de investigação “Bellingcat” recorreu à tecnologia de reconhecimento facial para ajudar a identificar um russo que filmou a tortura e o assassinato de um prisioneiro na Síria.
No entanto, o seu uso na Ucrânia está a ser mais abrangente do que em qualquer conflito anterior. Aric Toler, investigador da “Bellingcat”, utiliza a plataforma de reconhecimento facial FindClone na Rússia, e que o sistema tem sido particularmente útil para identificar soldados russos mortos. Assim como o Clearview, o FindClone pesquisa imagens publicamente disponíveis na Internet, incluindo páginas de redes sociais russas. Até pessoas que não têm contas nas redes sociais podem ser encontradas.
A tecnologia de reconhecimento facial pode ser utilizada como ferramenta de investigação. Mesmo que uma pessoa nunca tenha tido um perfil nas redes sociais e acredite que removeu o seu rasto da internet, pode ser encontrada alguma imagem no banco de dados. Até mesmo os militares ou funcionários do sector de segurança, que quase não têm presença notória na internet, podem ser detetados pelo sistema.
DIREITOS HUMANOS EM CAUSA?
Os críticos apontam que a tecnologia de reconhecimento facial nem sempre tira conclusões corretas, o que, em tempos de guerra, pode ter consequências potencialmente desastrosas.
O Clearview não está a ser usado apenas para identificar cadáveres na Ucrânia. A empresa também confirmou que o Governo ucraniano está a utilizar a tecnologia em postos de controlo, para ajudar a identificar suspeitos inimigos. A BBC teve acesso a um e-mail, de uma agência ucraniana, que confirma que o sistema é também um recurso para identificar os vivos, entre os quais suspeitos detidos. Os analistas defendem que as conclusões do Clearview não devem ser encaradas em “questões de vida ou de morte”, dada a margem de erro.
Albert Fox Cahn, do grupo de vigilância Surveillance Technology Oversight Project, apelida esta situação de “uma catástrofe de direitos humanos em formação”. Em declarações à Forbes, o responsável declarou: “Quando o reconhecimento facial comete erros em tempos de paz, as pessoas são presas injustamente. Quando o reconhecimento facial comete erros numa zona de guerra, pessoas inocentes são baleadas.”
O fundador do Clearview insiste que os testes apuraram que a tecnologia tem mais de 99% de precisão, que está dependente da qualidade da imagem, da posição da cabeça e do grau de exposição do rosto.
A tecnologia de reconhecimento facial, no entanto, pode ter aplicações distópicas. Em novembro do ano passado, a BBC adiantou que havia planos, por parte do regime na China, para recorrer à tecnologia de reconhecimento facial para atingir jornalistas.
A empresa garante que não permitiria esse tipo de pesquisa, e que não trabalha com governos autoritários, como a Rússia.
Existem ainda aplicações para a tecnologia Clearview em contexto militar. No ano passado, a empresa assinou um contrato com o Pentágono para apostar no uso da tecnologia em óculos de realidade aumentada, por exemplo. Esta é uma das várias empresas que desenvolvem inteligência artificial de reconhecimento facial em contratos militares.
Os defensores da privacidade também têm outra preocupação em mente: o sistema de reconhecimento facial pode ser útil para as autoridades ucranianas em tempos de guerra, mas será que esta tecnologia será devolvida em tempos de paz?
- Texto: Expresso, jornal parceiro do POSTAL