Longas linhas têm sido escritas acerca do novo estatuto jurídico do animal, sobretudo acerca do crime de maus tratos a animais de companhia. Por esse motivo, analisaremos nesta sede o crime de abandono de animais de companhia.
Dispõe o novo artigo 388.º do Código Penal, sob o título “Abandono de animais de companhia” que “Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias.”.
A pessoa que pode ser punida por este tipo de crime é, em primeira linha, o detentor ou a detentora do animal de companhia. Mas o crime pode também ser cometido por quem, no momento do abandono, tiver o animal a seu cuidado, recaindo sobre essa pessoa o dever de vigiar, guardar ou assistir. Isto significa que se o animal for deixado aos cuidados de outra pessoa temporariamente, esta pessoa passa a ter o dever de o guardar, vigiar ou assistir.
Mas o que significam estes verbos de “guardar”, “vigiar” ou “assistir”? No fundo, o detentor do animal de companhia deve assegurar o seu bem-estar e esse dever implica garantir, entre outros, o acesso a água e alimentação de acordo com as necessidades da espécie em questão, garantir o acesso a cuidados médico-veterinários sempre que justificado, incluindo as medidas profilácticas, de identificação e de vacinação previstas na lei.
Não assegurar esse bem-estar em termos de alimentação e de cuidados devidos, poderá determinar que a pessoa sobre quem recaia o dever assistir o animal incorra na prática de um crime.
Existe alguma dificuldade prática na interpretação do que se deve entender por “abandono”. Alguns autores defendem que abandono apenas ocorre com o acto de deixar o animal de companhia em qualquer lugar, votado à sua sorte. Outros, invocando o conceito de abandono do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 276/2001, sustentam que o abandono pode ocorrer mesmo em casa, desde que o detentor deixe o animal sem alimentação nem cuidados. O código penal não definiu “abandono” e quanto a nós, considerando o princípio da legalidade e da tipicidade penal, torna-se assaz duvidosa a transposição de uma definição externa à legislação penal. Queda a indagação!
Em todo o caso, sempre se pode afirmar que optou o legislador português por não criminalizar o acto de “abandonar” per se, antes exigindo que, para que a conduta constitua crime, do abandono resulte perigo a alimentação e a prestação de cuidados que são devidos ao animal.
Quer isto significar que abandonar um animal, por si só, não constitui crime.
E também significa que não integra a prática do crime o abandono, quando o animal abandonado for recolhido por outra pessoa num curto espaço de tempo, não chegando a ser colocado em perigo?
A norma incriminatória suscita muitas dúvidas quanto a este ponto, estando votada aos Tribunais a tarefa hercúlea de a interpretar, sobretudo porque o legislador usou uma técnica legislativa em que a conduta incriminada se sobrepõe ao próprio resultado de perigo que, em concreto, se tem de verificar para que se consume o crime.
Por fim, adiantamos ainda as dúvidas de constitucionalidade que o artigo suscita, nomeadamente ao nível do bem jurídico protegido. De facto, se o bem jurídico tutelado parece ser a vida do animal, a sua integridade física ou saúde, a verdade é que a conduta criminalizada não atenta contra esses bens jurídicos, resumindo-se à tutela da alimentação e de cuidados do animal.
Esta questão assume tanto maior importância, se atentarmos no facto de o crime de exposição ou abandono de pessoas, apenas punir as condutas que criem perigo concreto para a vida de pessoas.
Ou seja, no caso das pessoas, estas têm que ser abandonadas e desse abandono resultar perigo concreto para a sua vida, ao passo que no caso dos animais de companhia, para que a conduta seja crime, basta que estes sejam abandonados de forma a serem colocados em perigo a sua alimentação e cuidados.
Ficamos, pois, sem saber se o legislador pretendeu criminalizar o abandono de animais por ser um acto cruel tão comum em Portugal ou tutelar a sua vida, integridade física ou saúde dos animais de companhia.
Esta é uma dificuldade que, não sendo ultrapassada, poderá criar vazios punitivos ou, sendo efectuada uma interpretação da norma mais alargada, poderá derivar em punição penal inconstitucional.