“De cético, ou pelo menos tímido, o pensamento jurídico português evoluiu rapidamente para um estádio de genuíno acolhimento dos animais no coração do Direito, ao ponto de autorizar a identificação, na plenitude do seu sentido axiológico, de um novíssimo lugar dos animais no mundo do direito (que se afirmará progressivamente ao longo do século XXI como reflexo inequívoco da Humanidade)”.
Estas sugestivas palavras de Filipa Sá, Assistente da Faculdade de Direito de Coimbra, levam-nos a indagar sobre o fundamento que subjaz à proteção dos animais no nosso ordenamento jurídico.
O direito visa proteger e regular os valores que a comunidade considera mais relevantes num determinado contexto histórico e social e estes valores vão sendo constantemente alterados dada a plasticidade da vivência terrena. Mas visa também formar esses valores, quando o estado evolutivo ou civilizacional assim o exige.
Há muito que os valores ancorados na nossa comunidade reclamavam a proteção dos animais mas o positivismo moderno instalado entre nós centrou-se quase que exclusivamente no humanismo. As críticas transcendentalistas e pós-modernas vieram trazer a questão dos animais novamente ao pensamento jurídico.
Que lugar ocupam então os animais não humanos na axiologia comunitária hodierna?
A indagação não é meramente retórica se considerarmos que frequentemente somos assolados com casos de maus tratos a animais mais compatíveis com um cenário apocalíptico cinematográfico do que com a realidade.
Ora, se afirmamos que os valores comunitários determinam que os animais não humanos recebam tratamento igual à dignidade existencial de que gozam, não é despiciendo tentar encontrar o que conduz determinadas pessoas a condutas de mau trato, que não são raras – iteramos!
Desde logo nos deparamos com a própria incongruência do direito no tratamento dos animais não humanos! Reconhecendo o princípio da sua dignidade, atribui-se aos animais não humanos em Portugal um estatuto próprio mas, concomitantemente, determina-se que no que não estiver especificamente previsto, se aplica o regime das coisas.
Se partimos dos valores que uma determinada comunidade, contexto e história impõem, como podemos, ao mesmo tempo, afirmar esse valor como premente e retirar-lhe força?
A regulação pelo direito pode surgir para formação da consciência axiológica-comunitária ou decorrer dessa. No caso dos animais não humanos, a alteração ao seu estatuto jurídico em Portugal ocorreu na sequência do reconhecimento de valores cuja regulação a comunidade já exigia.
Quedou por trilhar o caminho da formação da consciência da comunidade relativamente a outros valores – ainda não consensuais entre as pessoas, mas exigidos pelo estado civilizacional atual e pelo próprio fundamento teleológico subjacente à regulamentação dos direitos dos animais não humanos!
Chegaremos lá! Se há dez anos atrás era impensável o caminho já efetuado neste âmbito, o panorama de evolução dá-nos alento e confiança que o Direito continuará o seu trilho em direção à plena efetivação da dignidade dos animais não humanos!
Tal como refere a Professora Teresa Pizarro Beleza, “O Direito é um mundo estranho. Subjuga e liberta, confina e abre horizontes, cria identidades e destrói-as.”.