Cátia Montes tem 33 anos, é de etnia cigana e é a mulher dos sete ofícios. A trabalhadora-estudante é ativista, voluntária em vários contextos e ainda bombeira voluntária em São Brás de Alportel.
“Nasci em Faro, mas depois vim logo para São Brás de Alportel e, portanto, sou praticamente nascida e criada cá”, começa por explicar em entrevista ao POSTAL.
Cátia Montes é licenciada em Educação Social. “Fora da licenciatura, a título informal, tenho tido várias experiências como ativista e outras formações que têm a ver com os direitos humanos e também com o voluntariado”, explica.
Como ativista, ela defende os direitos humanos, em primeiro lugar e depois a vertente dos direitos das comunidades ciganas.
“Eu sempre quis estudar, sempre tive vontade disso. Tive professores e colegas ao longo da minha formação que sempre me incentivaram e me disseram que eu era muito inteligente, muito boa aluna e que era bom que continuasse e, então, sempre guardei esse bichinho em mim, de que um dia poderia ingressar na Universidade”, afirma Cátia Montes.
Cátia confessou ao POSTAL que “no início os meus pais acharam um bocadinho estranho. Sou a primeira na família de gerações e gerações que entra na Universidade e conclui um curso superior, no entanto, agora que viram que consegui e que é uma coisa que me deixa muito feliz, também ficam muito contentes por mim”.
“Reconheço que o ser de etnia cigana não é o problema, pois todos nós estudamos. Eu acho que por vezes o que acontece é que existem situações em que a escola não está tão bem adaptada para receber alunos da comunidade cigana e depois não sabem cativá-los”, defende a ativista.
“A comunidade cigana é diferente e os miúdos têm capacidades cognitivas para poder mais e às vezes não são tão estimulados”, afirma.
Cátia Montes reconhece que muitas vezes as crianças acabam por se desmotivar. “É fácil perceber o porquê: quando se vem de uma família onde não há tanto sucesso escolar, as crianças começam a pensar que ‘também não vão conseguir’ e muitas vezes perdem-se pelo caminho”, defende.
“A minha inspiração vem da resistência”
Cátia Montes afirmou ao POSTAL que cada dia se inspira numa coisa diferente: “há pessoas que passam na nossa vida e que nos marcam, sem dúvida, mas acho que cada dia vou buscar força e inspiração a coisas diferentes. Uma delas é olhar para a sociedade e ver o estado em que ela está”.
“Toda a gente diz que “não é racista… Mas”, “Eu não sou racista, mas…” E esse “mas” já significa muito”.
A são brasense afirma que “sendo de uma comunidade que é muito afetada, sinto por obrigação que tenho de resistir. Eu acho que a minha inspiração é essa: vem da resistência que se tem de ter perante as adversidades da vida”.
“Existem coisas muito simples como, por exemplo, o facto de ires a um supermercado e teres um segurança a olhar para ti de lado. Não parece nada de especial, mas para quem sente é complicado”, explica.
Cátia Montes revelou ao POSTAL que tem muito orgulho em pertencer à etnia cigana. “Desde pequenina existe uma coisa que eu digo sempre: seja onde for que a vida me leve, irei sempre levar as minhas raízes porque sem elas eu não estaria cá”.
“Quem não conhece as suas raízes e não se orgulha delas, não sabe quem é. A pessoa tem de ter consciência de onde veio para saber quem é”, realça.
“Tudo aquilo que os meus pais me ensinaram passa por ser cigana e não vejo qualquer problema em sê-lo. Acho que a comunidade cigana e a sociedade maioritária é que têm de aprender a aceitar as diferenças, que afinal, não são assim tantas”, complementa.
A ativista defende que “os valores são os mesmos, pois falando no contexto português, os valores transmitidos são mais ou menos iguais. O que pode acontecer é que são priorizados mais uns do que outros. Os ciganos têm reações, sentimentos e costumes como todas as outras pessoas”.
Cátia reforça que os valores que estão mais vincados na sua forma de ser são “o respeito pelos mais velhos, a ligação à família, o proteger as crianças, a união e a solidariedade entre a comunidade”.
O POSTAL perguntou a Cátia Montes o que a levou a ter uma vida tão diferente da restante comunidade cigana, ao que respondeu: “aí tudo depende do que poderemos achar diferente. Não acho que a minha vida seja assim tão diferente porque as comunidades ciganas não são homogéneas, todas elas são heterógenas”.
“As comunidades dependem do sítio onde estão inseridas, das condições económicas e sociais. Nós temos pilares que nos unem como ciganos, mas depois cada um, dependente da região, tem a sua forma de viver e de lidar. A minha comunidade de São Brás Alportel não tem uma vida tão diferente quanto isso. Pode não estar tão avançada a nível académico, mas não acho que seja assim tão diferente da sociedade maioritária que vive em São Brás de Alportel”, explica.
Cátia Montes defende que “se falarmos naquele estereótipo de que os ciganos não trabalham nem estudam, podem achar que sou diferente, mas a realidade não é bem assim. Há muitos ciganos que trabalham e também há muitos que escondem que são ciganos para poderem arranjar um trabalho e também há muitos que estudam”.
“O que eu acho é que quando existe uma notícia má é apontado o dedo e é rapidamente espalhado, em detrimento das boas que não são tão faladas e depois por muito bons exemplos que existam a sociedade não olha ainda para os ciganos como pessoas válidas e normais”, afirma.
A ativista defende que “é estando presente nos sítios que se faz a diferença. Acho que ser ativista de Facebook não muda nada. É estando nos locais que a minha voz é ouvida. É nos espaços académicos, no voluntariado em vários contextos, nas palestras onde sou convidada que posso dar a minha opinião”.
Cátia quer ajudar a desmistificar e desconstruir preconceitos
“Decidi tirar educação social porque podia estudar à noite, enquanto trabalhava de dia. Para mim era impensável deixar de trabalhar para me dedicar inteiramente aos estudos porque não tinha essa capacidade financeira”, afirma.
Cátia Montes refere que “esta escolha teve também a ver um bocadinho com a minha etnia porque eu também queria ajudar a desmistificar estereótipos e preconceitos que existem com a comunidade e achei que fazia todo o sentido entrar na área social”.
“No início, os meus colegas e professores não sabiam que eu era de etnia cigana, mas depois acabei por dizer-lhes e acabou por ser uma surpresa para todos porque em muitos e muitos anos de vida eu fui a primeira cigana que eles viram a frequentar aquele curso. Tive colegas e professores fantásticos no curso de Educação Social, na Universidade do Algarve”, afirma.
Cátia frequenta o mestrado na mesma área. “Escolhi Educação Social porque esta é uma área virada para a transformação social, para a mudança, para mexer nas estruturas e como eu pretendo em cada intervenção provocar mudança nas pessoas, decidi aprofundar os meus conhecimentos dentro dessas temáticas”.
Cátia Montes é ainda bombeira voluntária há oito anos. “Surgiu uma parte da minha vida em que eu sentia a necessidade de me sentir útil, sentia a necessidade de contribuir, de fazer alguma coisa. O meu pai já tinha sido bombeiro também há muitos anos. Às vezes 24 horas não chegam para tudo, mas tento conciliar todas as vertentes, de modo a conseguir estar presente em todos os momentos importantes”, recorda
Cigana algarvia falou dos sonhos futuros
“Em primeiro lugar gostava de ter uma carreira na minha área. É óbvio que gostava de entrar na área da educação social e poder participar em projetos e ações. Gostava de mais tarde olhar para trás e sentir que a minha ajuda fez sentido, tanto para mim quanto para as pessoas com quem me cruzei”.
Cátia esclarece que não pretende trabalhar apenas com a comunidade cigana no decorrer da sua atividade profissional. “Gostava de trabalhar com outras vertentes na área social, nomeadamente, com crianças e jovens em risco, pois sempre foi uma área que me cativou imenso”.
“Outro dos meus sonhos é que o ativismo resulte e que as pessoas tenham uma visão diferente. Gostava que mais pessoas seguissem o caminho que quisessem. Eu não pretendo ser o exemplo, não gosto muito dessa palavra, mas pretendo que as pessoas entendam que há outros caminhos e que se os quiserem seguir, existe sempre essa possibilidade”, defende.
Cátia Montes tem consciência de que este é um trabalho que tem de ser feito nos dois lados: na comunidade cigana e na comunidade não cigana. “Acho que têm de ser dadas oportunidades para que exista intercâmbio, para que as pessoas se relacionem e, acima de tudo, isto tem de passar por atitudes políticas, pois o racismo é uma coisa estrutural e institucional, embora as pessoas digam que não”, realça.
“O sistema está formatado de forma a excluir certos e determinados tipos de pessoas. Os mais vulneráveis estão nesse pacote e a comunidade cigana é um deles”, refere.
Cátia Montes realça que “tem de haver uma restruturação a nível político na nossa sociedade e as próprias pessoas têm de entender que dizer: “Ah, eu não sou racista… Até tenho um amigo cigano, mas”, essa mentalidade tem de acabar. “As pessoas têm de deixar de olhar para os outros como ‘aqueles é que são os maus’ ”.
Outro dos sonhos dela é melhorar a sua qualidade de vida e ter melhores condições a nível financeiro. “Eu trabalhei muitos anos no supermercado e depois para conciliar a reta final do curso, que era muito exigente devido ao estágio curricular e ao relatório final, acabei por sair e encontrei trabalho numa empresa de limpezas, onde a senhora me aceitou com as minhas condicionantes horárias”, revela.
“No supermercado não conseguia conciliar porque os horários são rotativos. Mantenho-me nesta empresa de limpezas até conseguir outra coisa. Nós temos de lutar pelos objetivos nas nossas vidas e, de vez em quando, temos de trabalhar naquilo que há. Não tenho vergonha nenhuma de dizer que trabalho nas limpezas, que já trabalhei no supermercado e até que já fui à alfarroba”, confessa.
Cátia reconhece que “muitas vezes o fator querer não chega. Passei por muitas situações onde estive a um fio de não conseguir. O fator económico foi um deles, depois o fator laboral também, porque não tinha horários compatíveis”.
Cátia Montes afirma que, por vezes, existem ainda barreiras psicológicas: “os ciganos também acreditam nos próprios estereótipos que a sociedade cria e é preciso desconstruir isso”.
“É como se fosses colocado num canto e te dissessem que só podes ser isto ou aquilo e tu ficas ali presa. Tu não acreditas porque estás condicionado”, afirma.
“Infelizmente, há vários relatos que retratam esta realidade. Por exemplo, tenho um amigo meu que é cigano e umas das professoras da primária que ele teve virou-se para ele e disse: não vale a pena estares com muita coisa, porque daqui vais para as feiras”, recorda.
“Reconheço que, se calhar, a professora o disse sem intenção, mas este tipo de coisas marca completamente a vida de uma criança”, defende.
“Está na altura de mudar mentalidades e lutar por um lugar justo, um lugar que pertence a todos” e que “qualquer um tenha oportunidade de lá chegar sem ter de passar pelo triplo das dificuldades que uma pessoa que é cigana passa. Tem de existir igualdade de oportunidades e justiça social”, reafirma.
“Nós temos de ser avaliados por aquilo que somos e não por sermos desta ou daquela etnia, credo ou religião, por exemplo. O meu ativismo é isto mesmo: levar a minha voz mais longe e mostrar às pessoas que os estereótipos não são aquilo que elas pensam”, conclui Cátia Montes ao POSTAL.
(Stefanie Palma / Henrique Dias Freire)