A crescente exposição de crianças e adolescentes às redes sociais tem vindo a gerar preocupação, com novos estudos a apontarem para uma relação direta entre o uso intensivo destas plataformas e o aumento de comportamentos autolesivos. Segundo um estudo da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP), publicado em abril, a utilização das redes sociais como o TikTok e o Instagram está significativamente associada a ferimentos autoinfligidos em jovens, com gravidade de ligeira a moderada.
A investigação, liderada por Luís Guilherme Spínola e Irene Carvalho da FMUP, em colaboração com Cláudia Calaboiça, do Centro de Psicologia da Universidade do Porto (CPUP), baseou-se na análise de dezenas de estudos realizados em várias partes do mundo, como Estados Unidos, Reino Unido e China. Os dados apontam para uma ligação inquietante entre a utilização das redes sociais e comportamentos de automutilação em jovens entre os 9 e os 24 anos, tanto em contexto de internamento psiquiátrico como na comunidade.
Automutilação: um fenómeno em crescimento
Em comunicado, a FMUP destaca que “tem-se assistido a um aumento dos casos de crianças e adolescentes que infligem danos a si próprios de forma intencional, através de cortes, arranhões ou pancadas, habitualmente em zonas do corpo acessíveis e fáceis de esconder, como pulsos, braços, barriga e pernas”. Estes comportamentos, explicam os autores, surgem como um mecanismo de resposta a emoções negativas intensas, como a raiva ou a ansiedade, e podem funcionar como uma forma de autopunição ou, mais raramente, de punição de terceiros.
Para os investigadores, este é já um problema de saúde pública, que afeta particularmente adolescentes e jovens adultos. No entanto, alertam para a complexidade do fenómeno. “A possibilidade de um efeito de contágio permanece uma questão em aberto, assim como a causalidade da associação entre redes sociais e comportamentos autolesivos”, referem, salientando que, até agora, não é possível generalizar a causalidade desta relação.
Redes sociais: o fator de exposição
O uso generalizado das redes sociais alterou profundamente a forma como os jovens se relacionam entre si e com o mundo à sua volta, a partir de idades cada vez mais precoces. Plataformas como o TikTok, que promove a partilha de vídeos curtos, e o Instagram, que se foca na imagem e na estética, tornaram-se parte integrante da vida de muitos adolescentes, mas essa presença constante tem o seu lado negro.
Para além da autolesão, o impacto negativo das redes sociais tem sido associado a condições como depressão, ansiedade e cyberbullying. O relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicado em setembro de 2023, reforça esta preocupação. De acordo com Hans Kluge, diretor da OMS para a Europa, “precisamos de uma ação imediata e sustentada para ajudar os adolescentes a parar a utilização potencialmente prejudicial das redes sociais, que tem demonstrado levar à depressão, ao ‘bullying’, à ansiedade e ao mau desempenho escolar”.
A necessidade de investigação e intervenção
Os investigadores da FMUP sugerem que sejam realizados novos estudos longitudinais, que acompanhem as experiências e as perspetivas das crianças e jovens ao longo do tempo, com o objetivo de perceber em que medida a automutilação é precedida ou influenciada pela exposição a conteúdos nas redes sociais. É também importante, defendem, que os autorrelatos dos jovens sejam complementados com dados objetivos, recolhidos através de ferramentas tecnológicas, para medir o tempo real de exposição às redes sociais e estudar o impacto de variáveis como o número de horas de utilização e o papel do género.
A utilização problemática das redes sociais, que partilha semelhanças com os sintomas da toxicodependência, tem vindo a crescer entre os jovens europeus. Dados recentes indicam que 11% dos adolescentes (13% das raparigas e 9% dos rapazes) apresentam sinais de uso excessivo, em comparação com 7% registados quatro anos antes. Estes números refletem um aumento preocupante da dependência digital, que se manifesta na incapacidade de controlar a utilização das redes, no abandono de outras atividades e nas consequências negativas no dia a dia dos jovens.
O caminho a seguir
Este estudo alerta para a necessidade urgente de uma intervenção coordenada entre pais, educadores, profissionais de saúde e legisladores, para travar os efeitos nocivos das redes sociais na saúde mental dos mais jovens. Embora as plataformas digitais tenham vindo a transformar a forma como comunicamos e acedemos à informação, é essencial equilibrar o seu uso com a proteção e o bem-estar das gerações mais novas.
A era digital veio para ficar, mas é crucial que, enquanto sociedade, consigamos moldar este futuro de forma responsável. As redes sociais, como qualquer outra ferramenta, são aquilo que fazemos delas. E neste caso, a sua utilização equilibrada pode ser a chave para travar o aumento dos comportamentos autolesivos nos jovens.
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