Álvaro Domingues traz-nos um dos livros mais importantes que se publicaram ao longo de 2017: Volta a Portugal, Álvaro Domingues, Contraponto, 2017. Domingues é um autor raro, pela vastidão da sua cultura, pelo saber articulado que faz da geografia humana, da arquitetura, do urbanismo, ajustando como mais ninguém sabe fazer o entrosamento entre a narrativa escrita e a imagem. Começa por nos dizer que entrou nesta viagem singularíssima sem ignorar os escolhos: “A estabilidade forçada que havia sobre o tempo longo e sobre os relatos mais ou menos mitológicos em torno da construção de uma identidade da terra, da língua, da História e da cultura – nós, os portugueses –, explode agora em estilhaços. A realidade dificilmente converge em consensos alargados. Discutem-se contrastes e dissonâncias ou concorda-se em coisas vagas. O presente é errático e o futuro um enigma. Para complicar a situação deste mosaico nacional em deriva, são cada vez mais importantes a ação de processos de origem global e a disrupção ou mesmo a ruptura radical, com o que sabíamos ser a continuidade de tendências da História recente ou remota. O País desconfinou-se. Vai tudo veloz e caótico, no sentido em que não se percebe se o turbilhão evolui de forma linear, ou em direção a um qualquer ponto de equilíbrio ou estabilidade”.
Trata-se de uma volta a Portugal onde vemos escombros, extravagâncias, bizarrias entre a cidade e o campo, abandonos chocantes, o grotesco de modernices e o insulto mais alvar à arquitetura com caráter. Dentro daquilo que se chama a construção mitológica dos altos lugares, viajamos até à Serra da Estrela, por ali andou Viriato, por ali se profana a majestade daquelas escarpas e paisagens lunares. Recorda-se que as Luzes e o Racionalismo trouxeram logo a ciência para a descrição do território e da paisagem, vão erguer-se os cenários alpinos, para a viagem e até para as belas artes.
Vamos agora por terras sempre dantes navegadas, do Minho aos Açores. O autor deixa-nos um aviso: “Muito se insistiu no Portugal dos marinheiros, dos fados, da bola no jardim à beira-mar plantado – um território, o nevoeiro dos antepassados, os mitos, o império, a língua, a saudade e a ruína, aquele que os deuses amam e visitam. Pode ser tudo isso e muito mais e mudar no dia seguinte a seguir ou perder-se no caminho; pode dar um execrável programa na televisão, um elaboradíssimo ensaio, um solene discurso patriótico ou uma frenética crepitação nas redes sociais”. As imagens não valem só mais que mil palavras, trovejam o furor da paisagem agredida, indignam-nos opor tanta intromissão de cimento ou tijolo, do desfiguramento da escala, da asfixia do antigo pelas novidades ridículas do novo.
Do Minho passamos ao Douro e o autor intervém: “Dizer que o Douro é a relação íntima entre a atividade humana e a natureza parece muito pouco para acertar com o que realmente nos deixa perplexos em terra de tantas contradições. Afinal, é uma terra entalada entre o lento desfazer dos povoados, que se espalhavam pelos altos arejados dos vales, e a irrupção continuada do efeito das dinâmicas globais dos negócios do vinho e do turismo. Nunca o local e o global estiveram tão intensamente colados como aqui”. Seguimos para Ria de Aveiro, o leitor já acumulou um ror de desfiguramentos e de caricaturas seguimos para o Ribatejo, depois a Oeste, aqui entrelaçam-se abandonos, novo-riquismos e estragação dos pontos elevados, até com moinhos caricaturais.
Do Alentejo, até porque a paisagem integra trabalho, o autor vai buscar um texto de Silva Picão que nos fala da criadagem permanente e pessoal transitório e podemos ver como 70 anos podem ser séculos: guarda, carpinteiros, abegão, sota, boieiros, cozinheiro, amassador, carreiros, ganhões, hortelão, tratador de cavalos, paquete, ganadeiros, maioral, maioral das mulas, porqueiros, farroupeiros, entregue das porcas, vareiro, vaqueiros, açougueiro, alavoeiro, novilheiro, eguariço, poldreiro, cabreiro, chibateiro, alfeireiros, boieiro ganadeiro-maioral, corta-ramas, mondadeiras, camarada de ceifeiro-ratinhos, enrilheiradores, tardão, camarada tosquiador… Estamos no Algarve, “a máquina de fazer paisagem é o turismo com todas as suas variedades e contradições. Variada, contraditória e mutante, farta ou seca, rica ou pobre como no tempo em que os rendeiros trabalhavam os quartos de um hectare do latifúndio da Quarteira, a frenética turística dá de comer a muito povo apesar da sua inclinação predatória por lugares bonitos e comida rápida.
Passamos para as ilhas, que sempre nos fascinaram pelas “descrições de montes onde o fogo rebenta, vieiros de enxofre, aluviões, enseadas, ataques de corsários, histórias e milagres, colheitas prodigiosas, montes, grotas, ladeiras íngremes, terras penduradas, fidalgos e escravos, famílias e suas linhagens ou teorias sobre o vulcanismo. Agora que as ilhas estavam a perder mistérios e encantamentos a favor dos assuntos repetidos para a TV – incêndios e aluviões na Madeira, viadutos e túneis, o Ronaldo, o fim de ano, os turistas, as vacas felizes dos Açores, as Festas do Espírito Santo, a emigração, etc. – Veio novamente a mística do chamamento do mar por causa da enormidade da nova Zona Económica Exclusiva. Do Corvo às Desertas, lá teremos de orientar a natureza ultraprofunda desta outra terra incógnita. É muita água, muito sal, muita cagarra”. Imagens sardónicas, autênticos murros no estômago, tanta deformação, tantíssima falta de respeito pelo desenvolvimento ou pela sustentabilidade. Daí o fecho da viagem com um poema de José Tolentino Mendonça, bem a propósito: “Viajava nuvens e sombras pelas fajãs/a mesma solidão perigosamente/transcrita naquele cinzento-avermelhado/sob as escamas do céu/túneis, atalhos, águas geladas/por aí nos conduz a travessia/a folha e a flor pertencem ao vento/um olhar (ainda o meu?) persegue-as entretido/na grande subida/mais abaixo, quando principiava a vereda/manchas de líquenes cobriam de igual modo/o nome dos lugares onde iremos/e dos lugares onde não chegaremos”.
Uma volta a Portugal que nos inquieta nestes espelhos côncavos e convexos, mais imagens aterradoras que dulcificantes. Mas é o pais que temos.
Leitura imperdível.