Numa entrevista confessional ao “Nascer do Sol”, o vice-almirante Henrique Gouveia e Melo revelou-se um homem dividido entre África (viveu “até à adolescência”) e Portugal, um miúdo “que ia para o mato” africano onde as “iniciações sexuais davam-se mais cedo” e que quando cá chegou, a Viseu, deixou “de namorar” por achar “os bilhetinhos” que a “namoradinha” lhe “atirava para o chão” eram “ridículos”. E admite: “Tinha algum sucesso com as raparigas. Os meus colegas pediam-me conselhos nessa matéria”.
Gouveia e Melo também define o perfil do português no qual não se revê: o que tem medo e o que sente inveja. “Na Marinha sempre quis fazer as coisas mais esquisitas, mais difíceis, porque achava que eram as mais interessantes, mas sentia receio nos meus colegas. A maior parte das pessoas que viveram comigo parte do meu percurso nunca conseguiram entender o que me motivava. Há quem diga que fiz 31 dias num submarino porque era ambicioso. Ninguém quer sofrer 31 dias por ser ambicioso”.
Disciplinado “desde pequeno”, um estudante “preocupado, muito focado”, o coordenador da task force da vacinação assume no entanto que era “um jovem como muitos outros” que se “divertia como os outros rapazes” – mas com moderação. “Como não bebia, era o ‘carro vassoura’ que tinha de os levar para casa. Apenas para fazer um brinde. Não gosto. Beber e sentir que podia perder o controlo fazia-me muita aflição. Uma vez bebi uma cerveja: aquilo era amargo. Foi a última”.
Por outro lado, o vice-almirante assume um lado competitivo que não gosta de perder. “Nos exercícios da NATO sou o mais sanguinário possível. Se entra um inglês no exercício, é o primeiro que ataco porque lhes quero tirar o snobismo. Não gosto de snobes. Aos franceses também não perdoo, porque são chauvinistas, e os alemães também não deixo escapar porque tenho família judaica.”
A VACINAÇÃO
No papel de coordenador da task force, o vice-almirante fala de Francisco Ramos, a quem sucedeu quando este se viu embrulhado numa polémica com contornos políticos. “Um político não é um logístico e não está habituado a enfrentar.” Sobre o processo de vacinação – e a prevalência da variante delta -, Gouveia e Melo garante “a maior incidência é nos concelhos mais populosos porque não há vacinas para avançar ao ritmo que desejávamos”.
Se esta nova variante obriga a vacinar uma percentagem maior para atingir a imunidade de grupo é algo que o militar não confirma. “Ninguém tem prova disso. A variante propaga-se mais mas é igualmente contida pela vacinação. O que acontece é que há pessoas que estão apanhar porque só têm uma dose e uma dose protege pouco, sobretudo com a dose da AstraZeneca, e é isso que eu estou a acelerar agora. Protege muito, deixa é escapar alguns. Se tiverem as duas doses não deixa escapar nenhum.”
Um dia que termine este processo, Gouveia e Melo confessa que poderá “ir para África fazer alguma coisa”. Para um retiro? “Para fazer um retiro espiritual, tinha de ter duas coisas: uma corda e uma árvore para me enforcar”.
Gouveia e Melo: retrato de um “gajo duro” que passou mais de 800 dias fechado em submarinos
No passado sábado, o Expresso revelou quem “é o timoneiro do maior processo de vacinação alguma vez realizado em Portugal”. É é a história do comandante que preferia morrer no submarino que se afundava a ter de o abandonar. O vice-almirante que vacina o país nasceu em Moçambique e fugiu com os pais para São Paulo a 25 de novembro de 1975.
Margem de erro: zero. Nível de stresse: máximo. Era preciso decidir rapidamente, com sangue-frio e de uma só vez. Tinha apenas 20 minutos para salvar o submarino e os homens, enquanto a água inundava o compartimento a um ritmo infernal. Assim que as máquinas fossem alagadas, o “Delfim” morria, tornava-se pesado e desaparecia para sempre no fundo do Mediterrâneo. Mandou os 53 homens da guarnição prepararem os procedimentos para abandonarem o navio e pediu para ficar sozinho na ré, a analisar o desastre. “Preparem-se e avisem Lisboa que estamos com um problema grave!” Fez uma marca para ver quanto tempo demorava a água a subir e calculou: eram só aqueles 20 minutos… Um engenheiro tinha mergulhado até à zona da fissura e concluído que as bombas já não tiravam água suficiente: “Não estamos a conseguir!” Com a tripulação instável, Henrique Gouveia e Melo, o comandante, tomou uma decisão interior que o acalmou. “Aconteça o que acontecer, não abandono o navio. Prefiro morrer aqui do que ter de viver para justificar a perda do submarino.” Ainda lhe atravessou o espírito a história de um comandante da Marinha portuguesa, que certa vez abandonou o posto e foi forçado a voltar para bordo porque o navio acabou por não afundar. Ele não passaria por vergonhas dessas.
É um racionalista, um matemático que desde miúdo se diverte a estudar física. Talvez isso o tenha salvo. Quase por instinto, lembrou-se de uma manobra tão rara e hipotética que nunca a treinava: fechar o submarino — que na realidade é um tubo estanque dividido em cinco compartimentos — e aspirar o ar de fora para o interior, de modo a tornar o navio numa gigante câmara hiperbárica: com maior pressão do ar, a água deveria começar a ser empurrada para sair, em vez de entrar. Funcionou. Salvou-se a guarnição e salvou-se o navio. “Foi talvez a situação mais complicada que vivi”, recorda hoje, aos 60 anos, o vice-almirante Gouveia e Melo, coordenador da task force da vacinação, e o oficial da Marinha com mais horas de navegação e de imersão submarina: 31 mil horas de navegação e mais de 20 mil debaixo do mar (o que dá 2,3 anos fechado dentro de uma cápsula). É um operacional. Um duro.
Notícia exclusiva do nosso parceiro Expresso