Dois conhecidos jornalistas e com vasta bibliografia juntaram esforços para produzir um documento avassalador: Caso Sócrates, O julgamento do regime, por Felícia Cabrita e Joaquim Vieira, Esfera dos Livros, 2017. O mínimo que se pode dizer é que o seu trabalho exige leitura obrigatória, é uma das questões mais sensíveis de regime que está no centro das suas investigações.
Socorrendo-se, com mestria, das intersecções telefónicas já anteriormente divulgadas por jornais, revistas e canais televisivos, os repórteres iniciam formalmente a sua investigação na detenção do antigo primeiro-ministro no aeroporto da Portela, bem como de um conjunto de personalidades que fazem parte do seu círculo íntimo. E recordam que o processo que então se iniciava parecia destinado a apurar as razões que levaram o ex-primeiro-ministro a dispor do usufruto exclusivo e ilimitado de contas bancárias tituladas por um amigo no valor de dezenas de milhões de euros, matéria que intrigara, de alguns anos a esta parte, as autoridades fiscais e judiciárias. Com absoluto despudor, José Sócrates utilizava dinheiro a jorros em férias de luxo, em mulheres suas dependentes, em operações imobiliárias, roupa luxuosa, obras de arte e até na compra de uma quantidade impressionante de exemplares de um livro com a sua assinatura, entre outros comportamentos anómalos para quem dizia viver exclusivamente do seu trabalho. Mas a investigação judicial foi mais longe, encontrou ramificações com outras pessoas, caso de Ricardo Salgado e interesses económicos flagrantes na direcção da Caixa Geral de Depósitos e da PT. Esta reportagem que se configura num thriller político-económico baseia-se em fontes conhecedoras da Operação Marquês – nome dado pelas autoridades ao processo de investigação do inopinado enriquecimento de Sócrates. Prudentemente, os autores recordam que só após o desfecho judicial do caso haverá condições para fazer com objectividade o julgamento da Justiça.
Estamos perante um thriller de reportagem com todos os condimentos: uma detenção de estrondo; conversas telefónicas codificadas onde por vezes os protagonistas usam a linguagem mais desbragada e alarve; lobby praticado às escâncaras, um ex-primeiro-ministro que faz absoluta sinergia de conhecimentos desde Luanda a Caracas, sem esquecer Lula da Silva; um ex-primeiro-ministro, conforme as provas documentais, que mente, que aparece envolvido com familiares e a ex-mulher numa série de negócios no mínimo cinzentos, um ex-primeiro-ministro que justifica a quantidade impressionante de euros que transporta o motorista Perna alegando que não confia nos bancos; e o permanente fantasma de Carlos Santos Silva e do Grupo Lena.
Logo detido e prontamente interrogado, o ex-primeiro-ministro tem resposta para tudo, embora não saiba exactamente quanto deve a Carlos Santos Silva: são grandes amigos, em breve pagará o que deve, a falta de recibos ou declarações não tem importância nenhuma, blá-blá-blá. Foram anos a registar muitas centenas de horas de conversa, os principais interessados falam sempre em código para tratar de tudo, desde dinheiro a favores sexuais. O episódio do apartamento de Paris é um dos mais caricatos, apanharam-se conversas em que Carlos Santos Silva pede instruções a José Sócrates sobre a evolução das obras, coisa estapafúrdia quando Sócrates diz que o apartamento é propriedade do primeiro…
O thriller não permite tréguas ao leitor, enquanto Sócrates é posto à prova no Campus da Justiça, recolhem-se outros elementos, desde o património da mãe, às luxuosas compras daquele que insistentemente diz que “Vivo do meu trabalho e não tenho meios de fortuna”. Vão aparecendo os pagamentos que o motorista Perna vai fazendo por aqui e por acolá, o dinheiro despendido com as senhoras que prestam favores sexuais, chegamos ao processo delirante da compra de montanhas de livros, Carlos Santos Silva sempre a bombar dinheiro para um livro de autoria bastante duvidosa de José Sócrates, Domingos Farinho, segundo a acusação, está em muito maus lençóis.
E temos as intersecções bem pesadas entre a cúspide do poder político e os atores económicos, a PT com Zeinal Bava e Henrique Granadeiro na condução de uma operação que se terá revelado o soçobro do gigante dos telefones e comunicações. Os repórteres estendem os fios da investigação até Angola, ao primo Zé Paulo e familiares de Sócrates, entra em cena um senhor do Grupo Lena, Joaquim Barroca Rodrigues, com contas no banco UBS em Genebra, há Hélder Bataglia, as ramificações do BES, o ex-primeiro-ministro responde a todo o momento que é amigo de Carlos Santos Silva há 40 anos, há projectos de compras de casa envolvendo a jornalista Fernanda Câncio, tudo documentado, prossegue o longo requisitório apresentado ao arguido por Rosário Teixeira: onze capítulos ou áreas distintas em que se suspeita da prática de crime, e que vão desde os pagamentos de despesas a familiares e amigos até à compra de obras de arte ou de exemplares do livro lançado pelo próprio, passando pela constituição dos fundos titulados por Carlos Santos Silva, pela compra de Vale de Lobo, pelas várias operações financeiras da PT, pelos recebimentos em numerário, pelas aquisições imobiliárias, pela utilização do motorista na passagem de dinheiro, pela simulação de uma avença e pela participação no negócio audiovisual.
O leitor terá assim uma oportunidade de conhecer uma investigação sobre a Operação Marquês, intersectadas que foram 3633 comunicações telefónicas de 199 intervenientes em 39 telemóveis sobre escuta. A 10 de Outubro de 2017 foi divulgado o despacho de acusação, na crista da onda José Sócrates, Ricardo Salgado, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, nove empresas. Poderá não ser o julgamento do regime, como se refere no título da investigação, poderá ser o saneamento do regime se se apurar a verdade de tudo quanto aconteceu.