O maior tesouro do homem é a sua divina insatisfação
Ortega y Gasset
Há lá coisa que saiba melhor do que infringir um bocadinho as regras! É assim como que uma marotice de miúdo pequeno… Pode ser entrar em sentido contrário numa rua do parque de estacionamento para alcançar um lugar, passar um semáforo em verde tinto, ou abrir um presente de aniversário que chegou antes do tempo, para o tornar a fechar como se não soubéssemos o que contém. Longe vão os tempos de lançar mão à fruta num campo alheio, ou de deixar roubar um beijo num arrepio do coração!
Por que será que as transgressões sabem tão bem? Lá diz o ditado: “o fruto proibido é o mais apetecido.” Há qualquer coisa de desafio que acorda o espírito aventureiro que há em nós. O empinar de cadeiras para chegar ao pote da marmelada, não é apenas gulodice, pois não?
Às vezes não sabemos exactamente o que queremos e no entanto já sentimos cá dentro um impulso para sair do lugar onde estamos. É um impulso na direcção do desconhecido, mas não totalmente. A alma inquieta sente intensamente a chamada desse lugar ignoto com o qual estabelece um contacto, ainda que precário, uma notícia que pode não ser mais que um vislumbre. No entanto, esse indício pode ser suficiente para iniciar a mudança, sobretudo se nos sentimos incómodos, sem espaço vital, na realidade que nesse momento habitamos.
Porém, é importante distinguir a inquietude que surge do anseio de ir mais além, da actividade estéril. Essa vontade de estar em todas as partes, de actuar onde quer que seja, não estando verdadeiramente focado em coisa nenhuma. A actividade pela actividade acaba por afundar a vida humana. Falta-lhe um mínimo de realidade na qual se possa apoiar, falta-lhe um alvo para o seu anseio.
Este afã de mudança, de abertura, é contrabalançado por uma força de resistência da qual nos apercebemos melhor em situações de insatisfação elevada. Nesses momentos podemos entrever um núcleo de calma, de quietude, que María Zambrano denomina como uma “espécie de raíz da nossa alma” que subjaz à inquietação. É este fundo que nos permite suportar a adversidade e graças ao qual podemos esquecer. O esquecimento é fundamental para a continuação da vida. A manutenção em presença de tudo o que acontece ou que já aconteceu, não deixaria nenhum espaço à surpresa dos instantes vindouros.
O homem é o ser que padece
a sua própria transcendência.
María Zambrano
A vida, mesmo a mais regrada, tem momentos de dispersão. Por muito que se deseje a harmonia e a unidade, o processo para lá chegar implica desvios, erros, contradições. Estas contradições inerentes à vida devem-se à outra nota que a configura: o seu inacabamento. Tal como uma melodia, a vida nunca está dada de uma vez e por inteiro. É um desenrolar-se, é um processo, um movimento.
Por seu lado, o ser humano é um ser em aberto, constitutivamente inacabado. O homem precisa de uma visão de si mesmo e dos horizontes que se abrem a cada nova direcção da esperança. A esperança é o nosso modo de estar abertos ao tempo futuro. Quando nos sentimos desesperançados o horizonte fecha-se, mal podemos respirar! Por isso mesmo a vida sem esperança torna-se impossível. Ter esperança implica a capacidade de esperar. Espera-se a concretização de um desejo num futuro mais ou menos próximo. Às vezes quem espera desespera! É então que acontecem os retrocessos ou as desistências. Consta-se que mudar é demasiado doloroso e escolhemos regressar à nossa zona de conforto, à modorra dos dias, à monotonia das horas, à pseudo-segurança do por demais conhecido. Existem muitas maneiras possíveis de se des-viver, esta é uma delas!
Coexistem em nós duas forças contrárias: a conservação e a mudança. Uma parte de nós vigia e vela para que nada se modifique, num instinto de sobreviver, mantendo aquilo que já se é. Porém, outra parte de nós sabe que o seu lugar não é ainda aquele onde agora se está, e há que continuar a andar o caminho, sofrendo as metamorfoses que este exige.
Constitui um trabalho árduo dispor-se a viver plenamente, porque a vida plena implica o esforço de se tentar conhecer a si próprio. Contudo, muitas vezes, vivemos distraídos desta tarefa fundamental!
Só quando persiste no esforço do auto-conhecimento é possível que o homem se liberte de raiz de uma existência alienada, uma vida como personagem, passando a nutrir-se de verdade, vivendo como pessoa. A personagem é a máscara com a qual se enfrenta a vida em todos os seus aspectos, o trato com as coisas e a relação com os outros. São os diferentes papéis do indivíduo, as funções que representa ao lidar com os demais. Esta personagem proporciona-nos segurança e tranquilidade devido à suposta certeza de sabermos quem somos quando desempenhamos um papel ou uma função, quando somos o filho de alguém ou se está em posse de um determinado título. Existe uma tendência natural para que cada um se identifique com a função que desempenha na sociedade. Dessa forma, possuímos um nome e uma figura que são reconhecíveis por todos. No entanto, se retiramos todos esses “conteúdos” que compõem a nossa máscara que sobra? Saberemos reconhecer-nos a nós próprios? Talvez não seja tarefa fácil…
A pessoa é o indivíduo autêntico quando consciente da sua singularidade, e é tarefa de todo homem procurar conhecer a sua individualidade, pois o seu ser não lhe é completamente revelado, pelo contrário, vive normalmente oculto.
Se pretendemos tornar-nos transparentes para nós mesmos, revelar-mo-nos, isso não se consegue enunciando aquilo que fizémos ao longo da vida, os lugares que ocupámos, os prémios que eventualmente recebemos, etc. A pessoa não se identifica com todas estas personagens e seus diversos papéis ou funções, porque está mais além de tudo isso! Por este motivo é imprescindível empreender a busca da sua pessoa para que se possa acolher a verdade que reside no interior profundo de cada um de nós, e configurar a vida de acordo com ela. Se assim não se fizer, teremos desperdiçado o nosso tempo e, consequentemente, ter-nos-emos perdido a nós próprios!
O problema reside em que este ser que somos encontra-se para lá da notícia que dele temos, está permanentemente a construir-se e a destruir-se, modificando-se. Por este motivo, a imagem que temos de nós próprios nunca é a adequada. Estamos sempre para além do sítio em que julgamos estar, na realidade, vivemos em transgressão! É neste sentido que María Zambrano define o homem como o ser que padece a sua própria transcendência. Não se lhe consegue aceder de uma vez por todas. Alcançá-lo implica uma tensão, um estar para lá de si mesmo, em rigor, significa ter consciência daquilo que ainda não se é e criar o vazio, fonte de possibilidades para que algo passe a ser.
Quem não sente dentro de si uma fome de nascer completamente? Um desejo inexorável de levar à plenitude o ser que somos? Então, é preciso transgredir para transcender!
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Abril)