“Antigamente foi costume fazerem memoria das cousas que se fazião, assi erradas como dos valentes & nobres feytos…”
in “Chronica do Condestabre”, anónimo, 1440
Num período histórico em que tanto se fala da globalização, de “cidadãos do mundo” e ao mesmo tempo da extinção de culturas ancestrais e da biodiversidade, seria oportuno reflectirmos o contributo de investigadores sobre as identidades colectivas e a questão nacional.
Os textos bíblicos referiam-se ao Homem e à sua universalidade como uma criação de divina, a ideia de humanidade está registada desde a Antiguidade, não existindo especial novidade neste tema. Os vários internacionalismos dos séculos XIX e XX surgiram de ideologias em forma de desígnios que se contrapõem aos nacionalismos.
A percepção de pertencer a determinada comunidade permite ao indivíduo reconhecer a sua identidade, reforçada quando um Estado se estrutura como poder legitimado e autónomo num determinado território, assente em sistemas jurídico-constitucionais e de representação, em formas de organização social e económica.
Na constituição das identidades colectivas surgem sempre como elementos marcantes, a diferenciação em relação a outras comunidades, pertença com significado relevante e consequentemente atribuição de valor.
Contudo os Estados não evoluem todos da mesma forma, existem ou coexistem fenómenos culturais e económicos que orientam diferentes formas de organização da comunidade.
Portugal procura há muitos séculos entender-se, para além das lendas e mitos fundacionais, as suas origens, características diferenciadoras, a razão por que se constituiu desde o século XII como Estado independente, conservando as mesmas fronteiras continentais durante mais de 800 anos e porque atingiu o português expressão multicontinental, hoje o quinto mais falado do mundo, realidade que ultrapassa largamente a dimensão geográfica e demográfica do País.
Oliveira Martins, um dos mais produtivos historiadores do século XIX, escrevia com a sua ironia sarcástica que “até hoje todas as tentativas para descobrir a nossa raça, têm falhado. Latinos, celtas, lusitanos e afinal moçárabes, têm passado: ficam os portugueses…Essa coesão ganha nas lutas na primeira dinastia, perde-se no século XVI, por causa das consequências do império oriental e da educação dos jesuítas. Portugal acaba; os Lusíadas são um epitáfio”.
Afirmação polémica é a de que “todas as fronteiras são culturais… o que separa as nações é a nacionalidade, não são os rios nem os montes”, foi escrita por António José Saraiva que afirmava a hispanidade da cultura portuguesa, sublinhando que “a velha língua em que Afonso Henriques aprendeu a falar, a língua dos senhores e campónios da Galiza e dos guerrilheiros das Beiras, teve um destino raro e privilegiado. Foi por ela que os galego-portugueses se sentiram diferentes dos castelhanos muito antes de Afonso Henriques ter assentado o reino de Portugal em Coimbra”.
O português foi e é falado em todo o território nacional, sendo este um elemento culturalmente diferenciador em relação a Espanha, Estado plurinacional coexistindo nele diversos idiomas como o basco, o catalão ou o galego,…
José Mattoso alertava que “fazer coincidir os Estados com áreas culturais resultaram normalmente de ideologias totalitárias”.
É hoje evidente que Portugal se afirmou no contexto de uma Península Ibérica, fracionada por reinos concorrentes, que ora se combatiam ora se aliavam, por conveniência e contratos matrimoniais. Na transição para a modernidade, D. João II “ O Príncipe Perfeito” e Isabel de Castela e Fernando de Aragão os“ Reis Católicos”, centralizaram o poder real, dando origem a uma visão estratégica universal para os dois reinos ibéricos, claramente evidenciada no Tratado de Tordesilhas.
A influência de factores geográficos foi rigorosamente analisada por Orlando Ribeiro na sua incontornável e bem fundamentada obra “Portugal: o Mediterraneo e o Atlântico”.
Aspecto também abordado é o “perfil psicológico” do português e o seu “destino”, por autores Luis de Camões, Antero de Quental (Causa da decadência dos povos peninsulares), Oliveira Martins, Fernando Pessoa (A mensagem), mais recentemente por Eduardo Lourenço (o Labirinto da Saudade) ou José Gil (O medo de existir), entre outros.
As elites político-económicas actuais e os seus aparelhos comunicacionais, culturalmente pouco formadas ou menos interessadas nestas questões indispensáveis para entender o mundo que vivemos, consideram que soluções supranacionais estritamente económico- financeiras podem prescindir de fundamentos histórico-culturais que continuam vivos.
Fernand Braudel chamou a atenção que as civilizações são eternas e quando menos se espera… renascem.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)