Pouso em cima da mesa uma caixa de cartão. A porta, aberta para a pequena varanda, deixou entrar o vento e há papéis espalhados por todo o lado. Lá fora, as malvas a florir nos vasos pendurados presas por raízes à terra, e eu aqui, do lado de dentro, presa a nada, como os meus desabafos esvoaçando pela sala.
Pego numa folha que já não lembro, nem os tempos nem os sentimentos que lhe descrevi. E leio:
“Vá, coragem, despeja aqui a tua alma! Escreve aqui todas as palavras, todas! Esquece os medos, e se não encontrares as palavras que traduzam o que sentes, é porque ainda não foram inventadas todas as palavras.
Inventa-as sem medos, sobretudo esses que te azucrinam atrás das portas…das portas de ti, onde as noites te matam nos sonhos.
Não temas falar dos outros, porque nenhuma das tuas palavras se aplicará àquilo que eles realmente são, mas à forma como tu os recebeste em ti; nem são deles os teus caminhos. A tua história não é a história de ninguém: é tua, és tu, são os teus caminhos.
Tira a burca porque o tempo dos perigos já passou; derrama sobre este teclado a tua alma! Vence o medo que vives embebendo em tudo o que és tu! Tu és tu! A tua vida pode ter crescido misturada na vida de outras vidas, mas não fundida nelas.
A tua história não é a mesma daqueles que percorreram os mesmos caminhos que tu. As estradas da vida são comuns a todos, as vidas que percorrem as estradas, não. A tua história é feita dos caminhos percorridos dentro de ti mesma, com aqueles que voluntária ou involuntariamente deixaste entrar neles: nesses que ainda percorres e naqueles que dentro de ti chegaram ao fim da linha.
Não temas este parto que é só teu. Recusa qualquer benevolência. Não procures palavras que atenuem o que não tem forma nem jeito de dizer o que sentes, sem adulterar a imagem que passaste de quem és, nem temas que as palavras derramadas na vida, se confundam com os sentimentos que são apenas teus e cresceram… tanto, que já não os consegues reter dentro de ti. Não temas falar das tuas tristezas, das tuas mágoas, mas também de assumir as tuas felicidades, os teus amores, nem temas falar de ódios… não, não apagues a palavra sublinhada, essa é a palavra exata; a que define esse ardor raivoso que sentes, pelo mundo a que fechaste definitivamente as tuas fronteiras. Não temas as tuas culpas, as tuas dependências, nem as desculpas que não consegues conceder.
Usa os bálsamos que te restam para ti mesma, e não te deixes vencer pelo medo que as tuas confissões e desalentos, deixem a tua alma nua, as tuas fragilidades do avesso! Não és mais forte por mascarares as tuas fraquezas, nem deixas de o ser por mostrares o que és por detrás da máscara. Assume o teu disfarce e assume-te sem ele; dá-te o direito de teres direitos, de te apresentares do avesso. Não temas que por mostrar as tuas fragilidades te julguem enfraquecida!
Força. Vá! Expulsa todo o veneno que a vida te injetou. Espreme tudo o que és tu, até restar em ti apenas a essência, porque este é um filho apenas teu, e não deixes que te convençam do contrário.
Tu és responsável pelo que fazes, não pelo que sentes, não pela forma que os outros aceitam ou sentem o que tu és. Tu és apenas e completamente tu, mesmo o que transborda e derramas na vida, por não o conseguires reter mais.
Vá! Ainda tens uma arca de sonhos por abrir”.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de outubro)