É raro o mês (ou o dia) em que não haja a comemoração disto ou daquilo. Atenção, que não me estou a queixar, porque não sou nada contra as comemorações. Há várias que são fundamentais, para que a memória não se perca. Porém, tento resistir àquelas que apelam ao consumismo sem muito sentido.
Uma dessas, que está quase a chegar, é o Dia dos Namorados. Quando eu era mais nova, felizmente, essa data não se celebrava, pelo que não ter namorado não incomodava ninguém nesta altura mais do que em qualquer outra. Quando a moda pegou por cá, já eu não tinha idade para me ralar com isso, nem tinha amigas a questionarem: «Então? O que recebeste? O que é que ele te deu?», perguntas que amiúde ouvia, entre os alunos, nesta época do ano. O curioso é que não me lembro de ouvir os rapazes a perguntarem uns aos outros sobre o que teriam recebido… enfim, mas isso é outra história.
São Valentim
Parece que a popularização do envio de postais (e das subsequentes prendinhas), nesta data, começou no séc. XIX, nos EUA. Também a lenda que conta como, na Roma do séc. III d.C., o bispo Valentim continuou a casar os jovens, à revelia da ordem do imperador que os queria livres para a guerra, tendo sido decapitado num 14 de fevereiro, remonta à época do escritor inglês Chaucer, do séc. XIV.
Em Portugal – e consultei a lista dos santos padroeiros –, não encontrei nenhuma localidade que o tivesse como protetor, o que revela a pouco importância que tem por cá, entre a devoção do povo. Aliás, para nós, não há casamenteiro como Santo António ou São Gonçalo (também chamado de casamenteiro das velhas).
Há quem diga que esta data cristã se veio sobrepor a uma outra, muito amada pelos romanos, em que se celebravam as Lupercais.
Lupercais
Plutarco, um autor grego da época romana (viveu nos séc. I-II d.C.), escreveu, em César, sobre as festas das Lupercais, considerando que se relacionavam com uma festividade que os gregos tinham, as Liceias: um ritual de passagem da adolescência para juventude, realizado de noite, no monte Liceu, em honra de Zeus, mas que se veio a confundir com festas a Pã. Terão sido estas que foram para Roma e que deram origem às Lupercais. Pode não parecer, mas ambas as palavras estão relacionadas, pois quer lupus (de onde vem lupercal) quer lykaios (de onde vem liceu) significam lobo. Plutarco diz que muitos jovens bem-nascidos, e até magistrados, corriam de um lado para o outro, pela cidade, nus, golpeando quem lhes aparecesse à frente, com peles em tiras (tipo chicote, mas macias, talvez em lã), brincando e rindo. E que muitas senhoras, inclusive as da alta sociedade, iam ter com eles e punham-se no seu caminho, para serem tocadas e apanharam suaves chicotadas, convencidas de que isso lhes seria benéfico: as grávidas teriam um bom parto, e as sem filhos engravidariam mais facilmente.
Plutarco diz, ainda, que César assistia, sentado num trono dourado, enquanto Marco António era um dos participantes da corrida sagrada. Foi talvez esta obra que inspirou Shakespeare para escrever a cena II do 1º ato da peça Júlio César que diz respeito, precisamente, a esta festa:
CÉSAR: Calpúrnia!
CALPÚRNIA: Aqui, meu senhor.
CÉSAR: Põe-te diretamente no caminho de António, quando ele estiver a correr. António!
ANTÓNIO: César, meu senhor?
CÉSAR: Não te esqueças, António, durante a corrida, de tocar em Calpúrnia; pois os nossos mais velhos dizem que as inférteis, quando são tocadas nesta perseguição sagrada, livram-se da maldição da esterilidade.
Februarius
As Lupercais eram festejadas a 15 de fevereiro e estavam também relacionadas com rituais de purificação. Aliás, o nome do nosso mês de fevereiro vem do latim Februarius, cuja etimologia o escritor latino Ovídio (séc. I a.C.-I d.C.), numa obra intitulada Fastos, explica: «Os nossos antepassados romanos chamaram februa aos instrumentos de purificação (…). Enfim, o que quer que fosse usado para purificar os nossos corpos tinha esse nome no tempo dos nossos avós (…). O mês é chamado assim, porque os Luperci limpam todo o chão com tiras de pele e têm instrumentos de purificação» (2, 19; 29-32).
Este mês não existia no primitivo calendário latino, que tinha apenas 10 meses, iniciando-se o ano em março (daí que os nossos setembro, outubro, novembro e dezembro tenham os mesmos radicais de sete, oito, nove e dez, apesar de, para nós, serem os meses 9, 10, 11 e 12). Depois, talvez por influência grega, cujo calendário tinha 12 meses, Numa Pompílio (o segundo rei de Roma), ainda no séc. VIII a.C. acrescentou os meses Ianuarius e Februarius.
Assim, a razão da purificação acontecer em fevereiro resultava do facto de este ser (isto é, ter sido) o último mês do ano, e essa época de fronteira, de mudança, ser propícia a rituais catárticos, em que os erros podiam ser expiados, purificados, para se começar um novo ciclo, sem mácula. Ovídio dá alguns exemplos de personagens da mitologia grega que tiveram de passar por esse processo, como o caso de Peleu (pai de Aquiles), que, depois de matar um meio-irmão, foi expulso da sua cidade e teve de procurar quem o purificasse. O rei Acasto, de uma terra bem longe da sua, aceita, e o ritual é cumprido nas águas da Tessália.
Sagrados e profanos
Desde o séc. IV que o Natal se passou a comemorar a 25 de dezembro, sendo 2 de fevereiro (quarenta dias depois) a data escolhida para a celebração da Apresentação de Jesus no Templo. Nesse dia celebra-se também a Purificação da Virgem Maria. Por várias razões, também se festeja, nessa data, Nossa Senhora da Luz ou Candelária (porque tem candeias acesas).
A Igreja e alguns estudiosos dizem que não, que o papa Gelásio, que condenou, por escrito, as Lupercais (de alguma maneira, como visto acima, ligadas tanto à fertilidade como à purificação), no séc. V, não teve nada a ver com a introdução desta festa mariana que veio da igreja cristã do oriente para ocidente, pela mesma época. Parece que o manuscrito que a ele foi atribuído, onde a celebração da Purificação da Virgem aparece mencionada pela primeira vez, não é da sua autoria. Também afirmam que o facto de ele ter introduzido São Valentim no calendário dos santos, a 14 de fevereiro, também não teve nada a ver com aquela festa que queria banir do hábito dos romanos.
Seja como for: hoje não temos como fugir à data já instalada nos nossos hábitos. Quanto a mim, vou tratar de reservar uma mesa num restaurante para o próximo dia 14.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)