“E agora? Como é que consegue pôr isto tudo no papel?” Foi com este quase que desafio por parte do Agente de 1ª Classe Arlindo Moleiro, da Polícia Marítima de Olhão, que terminou a nossa segunda viagem com o piquete, naquela manhã de quarta-feira. O dia havia começado cedo, com a maré baixa e, por volta da hora de almoço, sabíamos já a resposta àquele repto: não se consegue. Vamos, no entanto, tentar.
Esta é uma história de amor. Uma história de amor entre o mar e a terra. O mar, impetuoso, ia e vinha a cada maré; não era capaz de permanecer no mesmo sítio. A terra compreendia isso, e era por compreender que jamais poderia possuir o mar em toda a sua plenitude que o acolhia de braços abertos, sempre que ele regressava.
E assim se foram amando, durante anos, milénios, Eras, e desse amor nasceu a mais bela, admirada e fértil das filhas: a Ria Formosa, uma das sete Maravilhas Naturais de Portugal, ela própria berço de vida sem igual na Europa.
E é em Olhão que o coração da Ria bate mais forte; é aqui que sentimos o seu pulsar, a vida que ali brota, que ali nasce, vive e morre, fecunda e indiferente ao passar do tempo.
Basta um passeio pela zona ribeirinha de Olhão para apreciarmos a beleza deste retiro que se estende até ao mar. Mas para sentirmos a Ria nas entranhas (sim, porque a Ria Formosa não é apenas uma paisagem ou um pedaço de Terra protegido pelas leis dos Homens; a Ria é uma entidade viva, dinâmica, que se entranha em nós, e jamais voltamos a ser os mesmos depois dela). Para sentirmos a Ria nas entranhas, dizíamos, impõe-se que seja de barco.
Logo nos primeiros minutos, temos a sensação de ter “aterrado” numa qualquer paisagem extraplanetária. O tempo e o espaço como que se desdobram e não correm com a mesma cadência. Ambos são ditados pelas marés e a Ria das 9 da manhã não é a mesma Ria do meio dia, nem das quatro da tarde, nem da meia noite.
Tem uma personalidade multifacetada, a Ria Formosa. Há a Ria da maré vaza, que faz com que navegar através dos canais ladeados pelos ilhéus deixados a descoberto pelas águas que foram ao mar se torne uma tarefa difícil, destinada apenas a quem os conhece muito bem. É na maré baixa que a Ria se revela, na nossa opinião, em todo o seu esplendor e crueza. A Ria enche-se de vida a cada 12 horas na maré vazia, onde chega a ficar a descoberto 80% do fundo. Mariscadores e viveiristas aguardam por ela para colher os frutos deste verdadeiro maná de vida que vai do Ancão à Manta Rota.
Aliás, um passeio pela baixa da cidade de Olhão é quanto basta para perceber como está a maré: na vaza, os cafés vazam eles também, porque todos estão na Ria, a mariscar, a colher o sustento.
“Apanhem apenas o suficiente para alimentar a família”. Este é o mantra que Nunes Ferreira, o comandante da Polícia Marítima e do Porto de Olhão repete incessantemente desde que assumiu o cargo. Ao cabo de poucas palavras trocadas, percebemos que também este homem sucumbiu, como nós, ao “feitiço” da Ria Formosa. E compreende-a como um “filho de Olhão”. Sabe que a Ria é frágil do ponto de vista da sustentabilidade dos recursos, mas sabe também que ela é o “mealheiro” destas gentes; é à Ria que o povo vai, quando o trabalho falta ou os rendimentos são parcos para fazer face a uma vida condigna. Quando o dinheiro não chega, vai-se à Ria, que ela provém.
“Mas há coisas que não posso perdoar, mando o meu pessoal não perdoar. Por exemplo, a pesca subdimensionada ou a apanha de mais do que é permitido por lei”. E assim se consegue o equilíbrio entre o que a Ria dá e o que o Homem tira; assim se mantém a paz entre as gentes da Ria e aqueles a quem cabe fazer cumprir a lei.
Depois, há a Ria da maré cheia, que fica melhor na fotografia, dizem os entendidos, e tão necessária à vida quanto a outra, a vazia. Na maré cheia, vão-se os mariscadores e os viveiristas; os viveiros de amêijoas e de ostras ficam submersos. A Ria Formosa fica, então, quase por conta das embarcações de recreio.
Entre auxiliares locais, mariscadores, embarcações de recreio e turísticas, estima-se que no verão cruzem as águas da Ria Formosa mais de mil embarcações por dia. Um número significativo pertence a quem, não vivendo da Ria, não consegue já passar sem ela. E muitos são aqueles que já fizeram do barco a sua segunda casa, passando meses aqui fundeados, já para não falar de quem possui barco para se deslocar de e para as ilhas, ou entre elas, durante o verão.
Outrora caótico, este processo de fundeamento tem vindo, paulatinamente, a ser regulado pelas autoridades. Exemplo disso é a recente limpeza do recovo da Culatra, onde as muitas embarcações fundeadas constituíam, já, um perigo para a manutenção da vida selvagem naquele espaço protegido por lei. Tudo para manter o equilíbrio neste sistema tão belo e tão importante para a vida das suas gentes.
Trata-se, de resto, de um equilíbrio difícil de manter. A Ria Formosa é, por natureza, um sistema em permanente mudança: ventos, marés e correntes actuam incessantemente sobre ela, fazendo com que, como já referimos, a Ria de ontem não seja a mesma de hoje nem de amanhã.
Depois, há uma influência porventura mais perniciosa: a do Homem. Diariamente, a Ria acolhe barcos de pesca, de viveiristas, de mariscadores, de turistas… uma pressão que não é natural, e em relação à qual as entidades que a tutelam se esforçam permanentemente por minimizar o impacto. Tudo para que Ria se mantenha, sempre, Formosa.
De acordo com Domitília Matias, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera, no que diz respeito à apanha de bivalves, existem vários tipos de actores, que se podem dividir entre os mariscadores licenciados, os veraneantes e os imigrantes. Quanto aos primeiros, a sua actividade está perfeitamente enquadrada, de forma a manter o equilíbrio entre o que a Ria produz e o que lhe é retirado. Em relação aos dois últimos grupos, a situação é mais delicada, uma vez que o impacto da sua actividade não é facilmente avaliável.
O trabalho de quem tutela a Ria é permanente: “No caso do lingueirão, por exemplo, há cinco anos atrás, a população existente na Ria era bastante numerosa, mas a apanha ilegal por mergulho quase que destruiu completamente os recursos. Teve que haver, por um lado, uma acção de fiscalização mais apertada a estes apanhadores ilegais e, por outro, um trabalho de revitalização dos recursos”, sublinha Domitília Matias.
Mas os mergulhadores ilegais não dormem… Felizmente, as autoridades também não.
Foi precisamente por volta das 21 horas que saímos à Ria com o piquete da Polícia Marítima naquela segunda-feira de Maio. A maré estava de feição e, por aquela altura, desengane-se quem possa pensar que as águas descansam.
Pelo contrário: à noite, as águas da Ria fervilham de actividade. São os barcos dos estrangeiros que fazem da Ria a sua casa durante longos meses no ano, e onde se janta à mesa na sala flutuante; são os pescadores, uns que vão ao mar, outros que voltam por essa hora, outros que voltaram mais cedo, já venderam o produto da faina na Docapesca e regressam a casa, numa das ilhas barreira; ou mesmo, como foi o caso daquela noite, um grupo de adolescentes que havia furtado o barco ao pai de um deles para ir passar a noite à Armona. Correu mal naquele dia.
Mas esta é outra história. Pelo meio, houve ainda oportunidade para abordar e fiscalizar algumas embarcações. Tudo dentro da legalidade.
É imponente a Ria, à noite. Se a maré está cheia e a lua é nova, as águas transformam-se num espelho negro, onde se reflectem as luzes da cidade de Olhão, uma imagem apenas perturbada por um ou outro barco que passa. Compreendemos agora quem faz do barco a sua casa e daqui não sai. Somos de novo visitados pela ideia de que o nosso quotidiano não está já ali, a poucos minutos de distância, mas que a viagem foi bem mais longa, porventura interplanetária.
Depois, há a poluição. Não poderíamos deixar de abordar este assunto. Se é verdade que, em tempos, a Ria era encarada como um esgoto a céu aberto, um estaleiro que não ocorreria a ninguém visitar, a não ser por obrigação, o trabalho que foi feito nas últimas décadas reverteu de forma quase completa esta realidade, e os resultados das análises e os galardões obtidos pela qualidade das águas e das zonas balneares não deixam margem para dúvidas. Hoje, as águas límpidas da Ria Formosa são o primeiro cartão de visita para quem chega.
Terminamos este texto voltando ao início: as palavras não são suficientes para descrever a beleza da Ria Formosa. Talvez as imagens o sejam. Mas nem elas transmitem a sensação da brisa no rosto e nos cabelos, o calor do sol, a calma que sentimos ao observar os mariscadores no seu labor, o cheiro a mar, e a peixe, e a morraça que se nos impregna e fica connosco muito depois de voltarmos a casa, a sensação de que tudo está bem no Mundo. Levamos a Ria connosco mas, seguramente, um pouco de nós também lá fica.
De Reserva Natural a Parque Natural e a diversidade de habitats
A Ria Formosa é uma zona húmida que se estende pelos concelhos de Loulé, Faro, Olhão, Tavira e Vila Real de Santo António, abrangendo uma área de cerca de 18.400 hectares ao longo de 60 quilómetros, desde a praia do Ancão até à praia da Manta Rota.
Trata-se de uma área protegida pelo estatuto de Parque Natural, atribuído em 1987. Anteriormente, a Ria Formosa tinha estatuto de Reserva Natural, instituído em 1978.
A sul é protegida do Oceano Atlântico por um cordão dunar quase paralelo à orla continental, formado por duas penínsulas (a Península do Ancão, que engloba a praia do Ancão e a praia de Faro; e a Península de Cacela, que engloba a Praia de Cacela Velha e a Praia da Fábrica) e cinco ilhas barreira arenosas (Ilha da Barreta, Ilha da Culatra, Ilha da Armona, Ilha de Tavira e Ilha de Cabanas), que servem de protecção a esta vasta área.
É uma zona húmida de importância internacional como habitat de aves aquáticas. Está, por este motivo, inscrita na Convenção de Ramsar, pelo que o governo português assumiu o compromisso de manter as características ecológicas da zona e de promover o seu uso racional.
Esta área protegida está também classificada como Zona de Protecção Especial e foi considerada uma das sete Maravilhas Naturais de Portugal, para além de fazer parte da Rede Natura 2000.
Podem-se encontrar ambientes tão diversos como ilhas barreira, sapais, bancos de areia e de vasa, dunas, salinas, lagoas de água doce e salobra, cursos de água, áreas agrícolas e mata.
É por estes motivos que a Ria se assume como um importante santuário de biodiversidade. É aqui que se podem encontrar animais em vias de extinção, como o camaleão, o cavalo-marinho ou a galinha-sultana.
Muitas espécies de aves aquáticas migratórias provenientes do norte da Europa passam aqui o inverno, ou utilizam a Ria como ponto de escala na sua rota rumo a paragens mais meridionais. Dos mamíferos existentes, destaque para a lontra, o sacarabos, a geneta, a fuinha, o texugo e a raposa.
É, também, de salientar a importância da Ria no ciclo de vida de numerosas espécies de peixes, moluscos e crustáceos, principalmente como zona de reprodução e alimentação. Trata-se, pois, de um sistema complexo e muito frágil, que importa proteger a qualquer custo.
A Ria em números
Ao longo dos seus 60 quilómetros de comprimento e mais de 18 mil hectares, a Ria Formosa é, como já vimos, um maná de vida. Com uma profundidade média de 2 metros, as suas águas e habitats albergam 288 espécies de moluscos, 79 de peixes, 15 de répteis, 11 de anfíbios, 214 de aves, 18 de mamíferos, 8 de aracnídeos, 5 de crustáceos e 6 de anelídeos.
A estas, acrescem cerca de 700 espécies de plantas. Poucos outros lugares do planeta suportam tanta biodiversidade numa área tão restrita. Não é, pois, de estranhar, que da Ria Formosa provenha, por exemplo, 90% dos bivalves produzidos em Portugal.
Por falar em bivalves, existem, em números aproximados, 586 viveiristas (amêijoas e ostras) e 240 mariscadores licenciados. Os viveiros ocupam uma área de 400 hectares, divididos por 1013 viveiros.
Ria: um espaço multitutelado
São muitas as entidades que tutelam tudo o que se passa na Ria Formosa: da Autoridade Marítima Nacional (Polícia Marítima) à Unidade de Controlo Costeiro (GNR), passando pela Agência Portuguesa do Ambiente, o Parque Natural da Ria Formosa, a Administração dos Portos de Sines e do Algarve, a Docapesca, ou a Câmara de Olhão (concessionária da Armona), cada uma destas entidades se certifica que esta zona protegida é cuidada e as leis, muitas vezes tão específicas, são respeitadas.
Sector turístico cada vez com mais expressão
São em cada vez maior número, e mais distribuídos ao longo do ano, os turistas que procuram a Ria Formosa para passarem as suas férias. São visitantes, nacionais e estrangeiros, que procuram fugir ao modelo massificado de outros pontos do Algarve, preferindo o sossego acrescido que as ilhas barreira, por exemplo, apresentam.
Procuram, também, conhecer a zona envolvente, não se limitando ao percurso “casa”-praia, e fazem questão de conhecer as gentes, usos e costumes locais.
Não faltam actividades, para todos os gostos: a Ria Formosa oferece um conjunto de praias, com destaque para as ilhas que são, porventura, as mais belas e tranquilas do Algarve. De carreira ou táxi, é fácil lá chegar, mas fica-se a léguas da azáfama que caracteriza esta região, sobretudo nos meses de verão.
Mais ou menos radicais, mas sempre em profundo respeito por esta área protegida, as formas de passar o tempo passam pela observação de pássaros, desportos náuticos, percursos pedestres, passeios pela Ria ou pesca desportiva. São apenas alguns exemplos, para além da praia propriamente dita.
Há, de resto, um número cada vez maior de pescadores e viveiristas que apostam no turismo, como forma de complementar a sua actividade. Conhecem a Ria como ninguém, e colocam esse saber ao serviço de quem nos visita.
Uma dessas empresárias é Sílvia Padinha. Mulher de armas, é na Ilha da Culatra que vive e é a partir de lá que desenvolve a sua actividade de viveirista e operadora turística. Ainda recentemente, encabeçou o processo que levou os produtores locais a lançarem a marca “Ostras da Culatra”.
Reportagem da autoria da Câmara de Olhão disponível com fotografias em http://www.cm-olhao.pt/destaques/em-destaque-o-que-e-que-olhao-tem/1959-a-ria-esta-cada-vez-mais-formosa-02.