Um livro que se compõe de 13 histórias, o que atendendo ao epílogo do autor pode até não ser uma coincidência, pois, como se anuncia na contracapa, a Morte é o denominador comum destas micronarrativas (para simplificar toda a simbologia do 13, limito-me a referir que a carta XIII do Tarot é a Morte).
Refere ainda a contracapa do livro que todos os protagonistas «infames» destas histórias «estão condenados a um único desenlace, sem redenção possível nem lugar no paraíso». Permitimo-nos discordar, como se lerá mais adiante, pois nem todos os contos são de facto sobre a morte e alguns deles interligam-se de forma magistral.
Jaume Cabré, um dos mais premiados escritores europeus da actualidade, nascido em Barcelona em 1947, autor de guiões cinematográficos e televisivos, declara numa nota final ao livro que por vezes no meio da escrita de um romance escreve um conto, «como quem para descansar atraca numa ilha desconhecida» (p. 243), impelido pelo projecto narrativo em curso ou justamente para dele se afastar, como quem procura nova perspectiva. Os 13 contos são relativamente breves, à excepção de «Os homens não choram» e «Ponto de Fuga».
Não sei se é por isso mesmo que é com este conto que abre o livro, mas «Os homens não choram» é uma das histórias a destacar. É essa verdade universal que o pai profere ao seu filho quando o deixa num orfanato, poucos dias depois de a sua mãe se ter suicidado, prometendo que o visitará no domingo. Mas o pai nunca vem. E o protagonista desta narrativa opressiva e desesperançada, um rapaz sem nome, terá de aprender a conviver com os outros jovens, cada um com as suas taras e problemas, enquanto tem de evitar o Henricus, que gosta de os tocar e apalpar, a frieza distante das freiras que vogam como pássaros. E este rapaz sem nome, apenas conhecido como «Tu» vive de tal forma imerso na penumbra que congemina, como salvação, o plano de matar Henricus com outros 3 amigos, para que não acabe por ser sodomizado como aconteceu com Tomàs. A narrativa oscila entre um eu e um ele, como se Tu se tivesse dissociado em dois, como estratégia de sobrevivência à vida no orfanato até ao dia em que atinge a maioridade e sai. Apenas para se deixar enredar numa nova prisão, quando assolado por um desejo de vingança Tu acaba por matar. Apenas para voltar a matar.
No último conto do livro, «O Ebro», acontece o inverso. Numa viagem de carro, dá-se um diálogo desencontrado entre pai e filho, ao longo de 11 páginas. Enquanto o filho interpela e conversa directamente com o pai, procurando atender às suas necessidades imediatas, como urinar, mantê-lo confortável, comprar-lhe os croissants de que gosta pois sabe que o pai é guloso, mostrando-se sempre solícito e paciente, o pai discorre num discurso ininterrupto que evidencia claramente que está preso aos acontecimentos que viveu na batalha do Ebro (deduzimos nós pelo título do conto) que recorda de forma tão vívida que teme o aparecimento do Sargento Mayo para lhe dar um tiro, apesar de ele ter morrido à sua frente nas margens do Ebro, possivelmente às suas mãos. Cedo compreenderemos que, a fechar o livro, temos agora um filho a deixar o pai num lar. Embora o pai não chegue a viver um dia nessa nova casa, pois morre às mãos do monstro do Paraíso, o mesmo pedófilo que assassinou 5 crianças no conto «Paraíso», pois foi ele o juiz que condenara o criminoso a prisão perpétua: «Naquele momento, não teve discernimento suficiente para se perguntar por que motivo as histórias da vida acabam sempre com a morte, como se não houvesse mais nenhum final possível para todas as coisas.» (p. 242)
Todas as restantes histórias são igualmente atravessadas pela temática da morte, mas sempre de forma violenta. Praticada como vingança, ou como um negócio, no caso de assassinos a soldo, ou ainda como acto de criação, como é o caso do protagonista de «As mãos de Mauk» que leva mais longe o acto de criar e aniquilar as personagens das suas histórias: «se ele era o deus que governava as personagens que criava, porque não podia ser o deus das pessoas que o cercavam? Quando escreveu a história do jardim zoológico, não decidiu só porque sim que Irene devia morrer? Decidiu-o porque sim, não por uma qualquer razão narrativa. Escreveu aquilo e Irene palmou, sem sequer ter o direito de reclamar, porque eu sou Deus.» (p. 210)
Escreve o autor, voltando ao epílogo, que nesta colectânea, publicada pela Tinta-da-china, há contos resgatados à gaveta, outros já publicados em antologias, mas há ainda uns quantos que nasceram quando trabalhava na actual compilação: «A dinâmica do livro em construção desperta em mim o desejo de contar novas histórias que, sem grandes melindres, se colocam lado a lado com outras narrativas que esperavam há anos pela oportunidade de enfiarem o nariz de fora.» (p. 245) Parece ser esse o caso destas histórias que ressaltam e quase se impõem como narrativas autónomas numa galeria de personagens «sem redenção possível nem lugar no paraíso». Contudo esse paraíso parece ser vislumbrado em alguns dos contos, a começar por «Claudi» onde um homem entra num quadro como quem muda para outra dimensão – quadro esse que volta a surgir em «Nunc dimittis» e depois em «Ponto de Fuga» –, onde o tempo se esvanece, não há sentimentos nem obrigações, e se vive uma imensa liberdade, caminhando rumo ao sol nascente pela mão de uma camponesa.
(Artigo publicado no Caderno de Artes Cultura.Sul)
(CM)