O sentimento de assombro
é a verdadeira marca
de um filósofo.
(Platão, Teeteto)
Na pequena, remota e fictícia localidade algarvia de Vilamaninhos, José Jorge Junior “foi assaltado pelo barulho de pessoas estarrecidas, que fugiam em direcção das suas casas, certas de terem assistido ao grande prodígio dos tempos modernos. Porque um bicho réptil voar de vísceras de fora, só deveria ter acontecido nos tempos bíblicos, muito e muito antigos”. (Lídia Jorge, O Dia dos Prodígios, p. 27) “Ela era azul, castanha e delgada e mexia como a água e o fumo mexem. Parecia um pensamento”. (p.19) Quando tentaram matá-la “saíram-lhe duas asas dos flanquinhos como uma fantasia de circo”. “Digam se não viram a cobra alevantar-se no céu, abrir umas asas de escamas, espelhadas e furta-cores. Saltou por cima dos nossos olhinhos levando atrás de si um sopro de pó verde e humidades. Foi aí vizinhos que eu caí de cu”. (p. 22)
Descobrir as causas do extraordinário acontecimento tornou-se a prioridade de toda a população. Tal não aconteceu por decreto. Simplesmente não podia ser de outro modo. As gentes não conseguiam dormir, nem comer, nem deixar de falar do sucedido. Depois do prodígio tudo mudou: “Macário disse. Antes sempre se ouviam as palhetadas. A Matilde disse. Antes você falava direito. E Manuel Gertrudes disse: Punhas-te a dormir como um passarinho e acordavas repousado. E Jesuína Palha disse. Depois daquela visão tudo ficou sobressaltado. E João Martins disse. Isso já foi. E Jesuína Palha disse. Só quem é cego não vê que depois disso as coisas mudaram de figura. E Macário disse. Que coisas. E João Martins disse. Cada vez a gente se sente mais perdidos”. (p.89)
Esta revolução interior, este incómodo insustentável, esta urgência em descobrir o porquê de algo é o início de toda a filosofia. Todo o conhecimento genuíno começa aqui, com o espanto! É ele que nos move, é ele que nos deixa num estado em que somos obrigados a procurar. Não há descanso para o ânimo. Não se pode senão continuar à procura porque o chão nos foi retirado debaixo dos pés. E não se consegue viver sem chão. E não se nos proporcionou outro solo por onde caminhar. Está-se em queda livre, ou a naufragar, para utilizar uma expressão orteguiana Dá-se aos braços e às pernas para se manter à tona. A cabeça não tem descanso, o ânimo entra em ebulição à procura, precisamos absolutamente de entender! É uma necessidade tão forte, tão urgente, tão física, como a de pão para a boca! É a intensa e dilacerante vontade de saber com que todo o homem nasce mas que está normalmente camuflada por uma densa camada de indiferença, aquele amorfo “vai-se andando” da atitude quotidiana.
Nem todos os dias surgem cobras voadoras
Será por isso que tão raramente se filósofa?
A questão está em que vivemos como que anestesiados e não nos damos conta dos prodígios que acontecem a todo o momento à nossa volta! Olha para aquela bicicleta que está agora ali encostada à parede na rua da frente. Agora? Se está ali há semanas! Há semanas? Eu passo por aqui todos os dias e nunca a vi. Nunca a viste, não, nunca reparaste nela, garanto-te que leva ali encostada semanas. E assim sucessivamente. De manhã, à mesa para tomar o pequeno-almoço, e não se encontra o açucareiro. Levantamo-nos e vamos ao armário, regressamos, damos voltas, e nada. Já nos preparamos para tomar um café amargo quando, de repente, o açucareiro aparece prodigiosamente à nossa frente! Como é possível só o termos visto agora quando necessariamente ele já ali estava? É forçoso que o açucareiro já ali estivesse, como não o vi antes?!
Mas pomos duas colheradas de açúcar na chávena e não pensamos mais no assunto. Não se nos ocorre perguntar como é que o açucareiro foi aparecer milagrosamente, precisamente nesse momento, à nossa frente. Problema resolvido. Ou melhor, problema, uma vez mais, camuflado.
A diferença entre a cobra voadora e o açucareiro invisível não é tão grande como aparenta. Trata-se de um modo de estar ido ao mundo, um modo de percepção. E de facto, é prodigioso que às vezes vejamos e outras vezes não. Qual é o mecanismo mental que involuntariamente nos oculta ou desoculta a realidade? Não sabemos, e o que é muito pior, nem sequer pensamos nisso. Por isso mesmo não filosofamos. Vivemos uma existência amorfa, indiferente, apática. É como se os nossos sentidos estivessem embotados, a funcionar a meio gás. É aquilo a que Edmund Husserl chama a “atitude natural”, tudo nos aparece de forma aproblemática. Não nos perguntamos o porquê de as coisas serem assim, ou de nos aparecerem desta ou daquela maneira. É assim e pronto!
E pronto?… O estado de sentir-se obrigado a procurar é de uma intensidade tal que não se aguenta durante muito tempo. A mente precisa de justificações para acalmar, para repor a normalidade.
Dá-se o 25 de Abril, a revolta dos cravos, finaliza a guerra no ultramar e politicamente as mudanças são enormes. Todo o país sofre uma revolução. Militares em carros blindados vão espalhando a “boa nova”, explicando às populações, mesmo às mais remotas, a grande modificação que o país atravessa. No entanto, para os habitantes de Vilamaninhos, esses seres sábios, considerados praticamente omniscientes, deveriam acima de tudo trazer a explicação do prodígio.
Afinal o que é a revolução de um país comparada com uma cobra voadora? Revolução que, para mais, em nada alterará o ramram diário daqueles que nascem e morrem esquecidos sem que ninguém nunca dê por eles.
E a mentalidade mágica, o “acreditar em milagres” como define o garboso soldado de cima do tanque, é de um exotismo que emudece e incomoda. Algo que os faz ir dali para fora a toda a velocidade, como se o acreditar em prodígios fosse uma doença maligna e quiçá contagiosa. Para os que ficam é a desesperança. Nem os omniscientes garbosos soldados têm uma explicação para o acontecido e resta-lhes tomar o desacreditado prodígio como alucinação colectiva.
O pior é que o prodígio apenas acordou as consciências durante um curto período. Com o passar do tempo, retomam-se os antigos hábitos: “Depois do bicho levámos quinze dias sem dizer um nome feio. Mas agora já andamos com a espinha curvada como se nada a gente tivesse visto”. (p. 78). Em alguns o acontecido calou mais fundo: “a mim ainda se me vai sair o cinzento dos miolos pelos tubinhos dos cabelos de tanto pensar na vida”. (p.203)
Para os estudiosos de literatura, este romance versa sobre a alienação, mas do ponto de vista filosófico, este é, sem dúvida, um texto exemplificativo do espanto. O verdadeiro espanto é um momento de não retorno, nada volta a ser como antes, há um resquício de incerteza sobre a natureza das coisas, dir-se-ía uma má consciência noética, espécie de pedra no sapato que não pára de azucrinar. “À espera da víbora ainda há quem ande, rua abaixo rua acima, olhos entre as patas, esperando encontrar um rojeiro feito pelo corpo do ser. E todos ficaram diferentes, e falam do antes e do depois”. (p. 65)
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(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Janeiro)