Investigadores e professores de história admitem que o ensino da disciplina em Portugal perpetua mitos sobre a herança colonial e está diretamente relacionado com os preconceitos dos docentes.
“Os manuais escolares estão muito reféns dos preconceitos dos professores”, afirmou à Lusa o presidente da Associação de Professores de História (APH), Miguel de Barros, salientando que os programas já incluem mudanças de designações e são mais inclusivos para outros povos, mas isso nem sempre chega às salas de aulas.
Nalguns manuais, “os preconceitos dos autores são óbvios”, referindo, por exemplo, que “os povos africanos eram muito variados até no aspeto” e, no passado recente, “era frequente colocar os escravos como produto”.
Para a socióloga Cristina Roldão, “os manuais são um reflexo de um problema”, que corresponde a “uma narrativa de uma identidade nacional em que a expansão colonial muitas vezes sob a designação eufemística Descobrimentos oculta muita violência colonial”.
“Não se trata de fazer uma expiação da culpa hoje”, mas sim “sobre a nossa responsabilidade, de quem dá aulas hoje, de conseguir contar essa história de uma forma que dialoga com aquilo que são as desigualdades do presente”, disse a professora do ensino superior, explicando que não é possível falar sobre o tráfico de escravos sem “estabelecer qualquer relação, por exemplo, com o racismo contemporâneo”.
E dá mais um exemplo: “Não me recordo de ter encontrado nenhum que dissesse que Portugal foi o maior traficante, não foi um dos maiores, foi o maior traficante de pessoas escravizadas no Atlântico e o seu processo de abolição da escravatura é um processo cheio de contradições”, porque é dos primeiros a avançar na Europa e é dos “últimos a fazê-lo no contexto do seu Império e das colónias”.
Para o historiador Luís Reis Torgal, “todos os Estados usam a história como propaganda”, mas o Estado Novo, até aos anos 1950, utilizou a disciplina como uma estratégia de afirmação do poder, que teve como ponto alto a Exposição de 1940.
Após o derrube do regime do Estado Novo em 25 de Abril de 1974, a “realidade mudou” e uma visão mais crítica “refletiu-se progressivamente no ensino da história”.
“O ensino da história está sempre relacionado com o contexto político. E hoje é necessário incluir outras preocupações que dantes não havia”, afirmou o historiador, salientando que a educação “reflete sempre a ideologia e a cultura de um Estado num dado momento”.
A revisão dos programas curriculares, conhecidos como aprendizagens essenciais, pela APH, a pedido do anterior governo, “vieram fazer a diferença, mas a mentalidade [dos professores] não mudou”, salientou, por seu turno, Miguel de Barros.
“Nós até pedimos para se falar em escravos em vez de pessoas escravizadas”, recordou Miguel de Barros, salientando que as “palavras têm peso” no processo do ensino.
Na formação dos novos professores, esse trabalho de sensibilização tem sido feito para combater os preconceitos, mas não existem formações específicas para quem é mais velho.
Na revisão feita às aprendizagens essenciais, em 2018, o “que fizemos foi agarrar nos programas anteriores e atualizá-los”, no quadro do que foi pedido, porque “havia um excesso de conteúdos em todas as disciplinas”, segundo a tutela.
Apesar de não terem adicionado mais conteúdos, a associação corrigiu algumas questões relacionadas com a herança colonial portuguesa.
“Dando um exemplo, que me ocorre de imediato é a questão da violência exercida sobre outros povos durante a expansão que é algo novo”, referindo claramente que o processo “provocou uma violência exercida sobre outros povos, nomeadamente o tráfico de escravos”.
Também foi feita a “relação entre o tráfico de escravos e o desenvolvimento do capitalismo, nomeadamente as plantações de cana-de-açúcar e a exploração mineira no Brasil” ou a “exploração do legado africano nas sociedades portuguesa e brasileira”.
“Nós esquecemos que estas pessoas são portugueses como todos os outros, mas durante muito tempo só se referia a influência europeia em Portugal”, salientou.
“Se calhar faz sentido colocar-se um pouco a mão na ferida” e incluir no ensino da história mais dados sobre massacres ou processos que orgulham menos Portugal, quando olha para o seu passado”, salientou Miguel de Barros.
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