“Se existir uma próxima Guerra Mundial, ela será travada entre civilizações”. A frase pertence a Samuel Huntington, autor de “O Choque de Civilizações”, teoria originalmente publicada em 1993 num artigo da revista ‘Foreign Affairs’ e expandida três anos depois no livro com o mesmo nome. É isso a que assistimos atualmente. Após a implosão e a queda do bloco soviético, os Estados Unidos e o modelo capitalista pareciam tornar-se hegemónicos, mas uma nova tensão manteve o xadrez geopolítico polarizado, dividido por uma outra cortina de ferro entre o Ocidente e o Oriente.
A ameaça desta bomba-relógio, acionada pela incompreensão e a intolerância entre modelos de sociedade radicalmente antagónicos, está mais presente do que nunca, reaquecida com a recente crise política e humanitária no Afeganistão, onde os jogos de poder e de influência deixam sempre a perder uma população historicamente condenada à miséria e à escassez de tudo.
Na passada semana, dois dias antes da chegada do primeiro grupo de afegãos a Portugal, o ministro da Defesa deixou bem claro que os tradutores e intérpretes que colaboraram com as forças nacionais e da NATO “têm o direito de trazer uma esposa, no caso de haver mais do que uma, como acontece por vezes”. Depois, em entrevista à SIC Notícias, João Gomes Cravinho, quando questionado se admitia rever essa posição, desvalorizou o assunto com um “não” taxativo. “Essa é uma questão perfeitamente secundária no quadro da emergência com o qual estamos a lidar. Para o caso, não tem nenhum tipo de relevância, porque não foi uma questão colocada por nenhum dos 22 que trabalharam com Portugal. É uma questão puramente filosófica e teórica”, disse o governante.
Por enquanto nenhuma das famílias afegãs que chegou a Portugal é poligâmica e este parece ser um cenário meramente hipotético, mas muitos mais refugiados vão chegar em catadupa e com eles podem trazer algumas interrogações morais e éticas para a bagagem cultural portuguesa. Ser justo perante uma crise humanitária é aplicar a Justiça de um país a quem nenhum crime cometeu aos olhos de uma outra lei à qual sempre esteve subordinado? É possível a sociedade ocidental mostrar-se tão preocupada com os direitos das mulheres no Afeganistão e simultaneamente trancar a porta a famílias poligâmicas, deixando para trás várias afegãs? É mais urgente salvar vidas humanas ou moldar a existência de outros ao modelo que vigora em sociedades ditas inclusivas, em que o próprio conceito de casamento se foi adaptando e já pode ser assinado entre pessoas do mesmo sexo?
Quem concorda com a posição do Governo é o sheik David Munir. “Quem vai para um país que não é islâmico — com as suas regras e uma delas é praticar a monogamia de acordo com a lei civil —, tem de respeitar essas normas. É tão simples como isso”, afirma o imã da Mesquita Central de Lisboa ao Expresso. “Se concordaram vir para Portugal, têm de saber de antemão que a lei só permite ter uma esposa”, insiste o conselheiro religioso da Comunidade Islâmica de Lisboa, afiançando que “a maioria dos muçulmanos portugueses só têm uma esposa”. Até porque no Islão, descreve David Munir, “o que acontece, regra geral, é o homem ter só uma uma mulher”.
Sheik David Munir, imã da Mesquita Central de Lisboa e conselheiro religioso da Comunidade Islâmica de Lisboa. Foto D.R.
A poligamia não é uma prática historicamente associada exclusivamente ao islamismo. O Antigo Testamento está pejado de vários exemplos na tradição judaico-cristã. Desde logo, o livro de Génesis conta que Abraão, patriarca das três grandes religiões monoteístas, teve três esposas. Mais tarde, no tempo da monarquia israelita, as escrituras narram que o rei David foi casado com oito mulheres, um número bastante abaixo das 700 esposas e 300 concubinas do rei Salomão.
Num passado mais recente, também o Terceiro Reich promoveu o “matrimónio de emergência nacional” na Alemanha, quando a propaganda nazi incutiu a poligamia na Juventude Hitleriana como algo “desejável” para potenciar a reprodução eugénica (processo que visa aprimorar a genética humana) da raça ariana.
Das três religiões abraâmicas, apenas o Islão continua a permitir atualmente a poligamia, à semelhança da própria vida de Maomé. “O profeta casou aos 25 anos com uma mulher de 40 que era viúva. Foi essa mulher que lhe deu quatro filhos e foi ela a primeira pessoa a aceitar o Islão. No entanto, quando Maomé emigrou de Meca para Medina — uma cidade onde havia muita rivalidade tribal — casou com outras mulheres viúvas e divorciadas para criar união entre os clãs. O profeta também casou com Aisha, a mais nova das suas esposas. Há quem diga que tinha 13 ou 14 anos quando casou, mas só mais tarde é que foi viver com o profeta. Isso era algo comum no passado, em todas as sociedades, e não era encarado como violação”, enquadra o imã da Mesquita Central de Lisboa.
O termo mais correto, na verdade, é poliginia, uma vez que apenas os homens podem ter várias esposas, no máximo quatro, mas às mulheres é proibido ter mais do que um marido. “Num tempo anterior ao Islão, a poligamia era uma prática comum, em que os homens podiam ter várias esposas. O que o Corão fez foi disciplinar e dar abertura para que um homem seja casado com mais do que uma mulher, mas isso é uma exceção pensada para proteger as mulheres indefesas num contexto social que lhes era hostil”, defende David Munir.
“Há 1443 anos, quando o Corão foi revelado, havia muitas órfãs e viúvas numa sociedade em que as guerras eram constantes. Para que ninguém se aproveitasse da fragilidade em que essas mulheres se encontravam, se algum homem casado se interessasse por elas e tivesse possibilidades financeiras para as sustentar, então deveria casar com elas, tratá-las de forma justa e igualitária”, explica David Munir.
Na prática, desmistifica o ministro de culto, “cada esposa tem o seu espaço e deve receber do marido exatamente o mesmo que as restantes; se um homem oferecer um carro à primeira mulher tem de dar outro à segunda”. Todavia, recomenda o Corão, “se receais não conseguir manter a justiça entre elas, então ficai só com uma”. Assim sendo, o facto de o Islão aceitar a poliginia não quer dizer que a aconselhe, como demonstram vários versículos corânicos.
“Não podereis, jamais, ser equitativos com as vossas esposas, ainda que nisso vos empenheis.” (4:129)”
A antropóloga Faranaz Keshavjee não tem dúvidas sobre como avaliar a regra para já imposta em Portugal: “Estamos perante um paradoxo”. Porquê? “Por um lado criticamos os homens afegãos porque tratam mal as mulheres, mas por outro exigimos-lhes que as abandonem se quiserem vir para cá. Ou seja, estamos a dizer-lhes: ‘Percebemos as vossas ideias, mas tratem lá disso de uma forma errada, porque nós cá só temos lugar para uma mulher’”.
O problema, sugere a especialista em Estudos Islâmicos e em Psicologia Social, é que “Portugal proclama-se um estado laico, mas não é assim tão preto no branco e está inundado pela presença religiosa”. Por outras palavras, as de Faranaz Keshavjee, “a laicidade existe formalmente, mas informalmente existe uma proximidade muito grande entre o Estado e o catolicismo”.
Ao Expresso, a antropóloga manifesta “toda a consideração pelo trabalho que o Governo tem estado a fazer”, mas adverte que não se pode achar que a nossa sociedade é dona da “ética e da moral”, até porque, enfatiza, “a história de Portugal é o produto de uma miscigenação cultural e durante 800 anos este território foi governado por muçulmanos”. “Embora não falemos muito dessa herança que está presente nos nomes, no idioma, na música e em várias tradições”, nota.
Faranaz Keshavjee, especialista em Estudos Islâmicos e antropóloga. Foto Ana Baião D.R.
Faranaz Keshavjee identifica “uma hipocrisia no Ocidente quando se fala de valores éticos e morais, achando que os seus princípios são superiores aos dos muçulmanos”. Mas aquilo que o Islão fez ao permitir a poliginia, sustenta, “serve para proteger justamente as mulheres”. Contudo, “a tendência para esta estereotipia social é muito resistente à mudança” e “as sociedades ocidentais olham sempre para o Islão como quem olha para um jardim zoológico, onde só há irracionalidade e os Direitos Humanos não existem”, observa Faranaz Keshavjee, para quem “são estas ideias que compõem aquilo que é a islamofobia”, uma “reação de nojo por uma forma diferente de ver o mundo”.
Este preconceito em relação ao islamismo, prossegue, “demonstra desconhecimento, falta de consideração total pela visão dos outros e até, mais do que tudo, falta de humanidade”. É por isso que advoga ser fundamental deixar claro que a poliginia “não se trata de um fetish sexual” dos muçulmanos, de forma a combater uma “narrativa que exotiza as mulheres islâmicas e que torna selvagens todos os homens que não são brancos”, na qual “os superiores consideram que os inferiores nem sequer das suas mulheres sabem tratar devidamente”.
AS MULHERES NO AFEGANISTÃO: PEQUENOS PEÕES NO GRANDE JOGO
A perita em Estudos Islâmicos distingue as práticas culturais do Islão dos costumes ancestrais enraizados no povo afegão, ainda mais desamparado desde que o território se tornou numa peça-chave do Grande Jogo entre dois impérios. “É uma sociedade que ficou muito atrasada do ponto de vista da evolução mais progressista e liberal em virtude das várias guerras que sofreu desde 1803, quando britânicos e russos se digladiavam por causa daquele território estratégico e decidiram inclusivamente separar uma zona que era comum”, evidencia Faranaz Keshavjee.
As feridas históricas continuam abertas e, de acordo com o diagnóstico da especialista, fazem com que ainda hoje “muitas mulheres afegãs, por força da extrema miséria das suas famílias, sejam vendidas ainda na infância ou dadas a casar em troca de alguns valores materiais”. Isso leva a que, “desde a sua origem, sejam mulheres completamente fragilizadas e desprovidas de qualquer tipo de recursos”, constata a antropóloga.
Posto isto, desagregar famílias poligâmicas e fechar a porta de entrada a várias mulheres — apenas por não serem a única esposa que o marido pode escolher trazer quando foge da opressão dos talibãs —, “no fundo é um homicídio”. Na prática, estas mulheres ficam “para trás em condições de extrema precariedade e pobreza”, sentencia Faranaz Keshavjee.
“UMA MULHER SOZINHA, COM FILHOS, OU É VIÚVA OU NÃO EXISTE”
“O que acontecerá às mulheres que não possam vir e que fiquem no Afeganistão?” A pergunta é feita por Paulo Mendes Pinto, especialista em História das Religiões também ouvido pelo Expresso, que imediatamente aponta a resposta. “Naquele contexto, as mulheres que não forem escolhidas pelo marido serão literalmente repudiadas — de acordo com a sharia, é isso que acontece — e isso é uma mácula terrível para elas. E, depois, como é que uma dessas mulheres se vai conseguir sustentar e sobreviver naquela sociedade?”
No limite, indica, “uma mulher repudiada é ostracizada por toda a sociedade, porque, mesmo que não tenha culpa nenhuma, foi preterida em função de outra”. Aí só terá duas saídas. “Ou terá a possibilidade de regressar com os filhos para casa do pai, se tiver a sorte de ser aceite, ou então fica na rua”, desvela o coordenador da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona.
Sion Touhig / Getty Images. Foto D.R.
“A sociedade afegã não concebe essa realidade. Uma mulher sozinha, com filhos, ou é viúva ou não existe”, assevera Paulo Mendes Pinto. O investigador e académico de 50 anos aclara que “na esmagadora maioria do mundo islâmico a estrutura familiar é igualzinha à nossa” e “em sociedades que se sedentarizaram há muitos séculos, a poligamia é raríssima”, sendo mais comum “em meios islâmicos de origem tribal, como a Arábia Saudita ou o Afeganistão”.
Terminando pelo início, este choque civilizacional “confronta as nossas tradições, a nossa moral, o nosso conceito de família e o próprio ordenamento legal”, reconhece o especialista em História das Religiões, concluindo que “humanitariamente esta questão terá de ser mais trabalhada”, até porque, “no Ocidente, o poliamor é algo de que já se começa a falar e, inevitavelmente, os textos legais terão de evoluir mais tarde ou mais cedo para o enquadrar de alguma forma”.
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