Vagueio pela casa: um apartamento pequeno e colorido, salpicado de recordações que vão mudando de lugar e cor, ao comando do meu coração e da minha vida desgastada que me enviou para aqui.
Um lugar que fui preparando com cuidado, por saber que seria aqui o final da linha – da linha do horizonte que levei mais de meio século a alcançar na vida e que com os olhos da alma nunca a perdi de vista. Espreito através da janela e reparo no trepidar do ar lá fora, onde o sol do Alentejo tolda a mente, enquanto nos acostuma a viver prisioneiros duma imensa liberdade.
Deito-me no sofá e cerro os olhos, tentando descansar das lembranças espalhadas por todos os cantos e paredes da casa que agora explodem de saudade em mim. Penso nos recantos que cada uma delas ocupa e merece, dentro e fora de todos os lugares onde eu habito.
Sinto saudade de quando o meu mundo era pequeno; de quando a minha memória ainda não tinha memórias. Sinto saudade de quando abria a porta da vida e o meu mundo ficava inteirinho atrás das minhas costas e cabia no relance do meu olhar; sem passado porque, para além das quatro paredes que o cercavam e o deixavam à vista, não existia mais nada – toda a minha existência estava ali presente!
Que saudade do tempo em que a minha vida se dividia em dia e noite; em que a porta aberta para as colinas a perder de vista, me deixavam inventar vidas de faz-de-conta, que eu não sabia chamar de “sonhos”, nem que tudo o que sentia brilhar dentro de mim era ser feliz. Muito menos ainda que os sentimentos escuros que apertavam o meu peito, tinham a cara do medo – um medo ignorante que não conhecia ainda o preço a pagar por cada metro a palmilhar no dia a dia da vida!
Saudade desse medo que sentia ao olhar a imensidão do espaço vazio e infindável, e eu na porta do mundo sem coragem para começar a caminhada. Saudade de saber fazer coisas simples e duradouras, daquelas que a infância não mudou aqui, dentro desta arca de sonhos, mas que o tempo levou a chave que eu não encontrei mais.
Tento fazer o caminho de volta, mas, ora adormeço nos recantos do passado, ora deslizo numa correria louca esbarrando nos atalhos deste labirinto que levei tanto tempo a construir, e sinto medo. Medo de olhar para trás e me dar conta de não avistar a porta por onde entrei, de não ver mais aquela luz que eu seguia e que iluminava o paraíso que procurava alcançar lá adiante no futuro, e agora tento encontrar no passado: um passado que avisto desfocado pelo muito que se distanciou!
Aqui estou eu inutilmente de olhos fechados: inutilmente por não conseguir fechar os únicos olhos que veem todos os meus caminhos – os antes e os depois. Por não conseguir impedir as visitas frequentes aos lugares onde deixei mascarados de coragem os meus medos, nem onde em redemoinhos continuam a azucrinar os turbilhões dos meus fantasmas. Tento desenvencilhar-me desta teia de pensamentos em que frequentemente me enleio, abro de novo os olhos e corro para aqui.
Quero escrever, falar dos trilhos que agora me assaltam à memória, daqueles que deixei na vida, daqueles que segui deixados por outros, daqueles que os meninos que cuidei deixaram gravados a ferro e fogo nos lugares secretos que com eles percorri nas suas infâncias, e se tornaram por isso meus também.
Talvez daqui a pouco eu já não veja nítidos como agora, todos os pontos onde as crianças que fomos tão distantes no tempo se cruzaram, e os lugares esquecidos dentro de mim que com elas de mãos dadas e olhos fechados percorri até a minha meninice. Como se todos os caminhos de todas as crianças se cruzassem algum dia em algum lugar!
Quero escrever, mas o meu pensamento corre mais veloz do que os meus dedos que aqui e ali deixam para trás marcas desvanecidas pela poeira cerrada que a minha corrida pelo tempo entretanto levantou.
Quero escrever as sombras que atravessei dentro de mim, numa proteção inconsciente de todos os que me viam sem me ver. Quero descansar do muito que corri enquanto pensava fugir de tudo o que não conseguia perder de vista, arrastando-o numa corrida louca à minha frente e eu atrás, colada a mim, sem me poder distanciar, sem me dar conta que só o tempo passava.
E aqui continuo eu tentando de novo. Mais uma vez de novo. Agora, lado a lado comigo, num caminho de regresso à infância que foi minha e num lugar onde só eu cabia: dentro de mim!
Quero imprimir a minha alma que agora me fala da criança que fui e que sempre será o meu porto seguro. Em qualquer cais, em qualquer saudade!
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de julho)