Quotidianos Poéticos terminou mais uma temporada. Ficam excertos das entrevistas a cada um dos poetas participantes. As entrevistas completas podem ser lidas no blogue: quotidianospoeticos.blogs.sapo.pt
Adão Contreiras
A poesia exige disponibilidade, embora estados de tensão, não esquecer, também levem à produção; mas liberdade e tensão emocional não são contraditórios, digamos mesmo que, juntas, formam um quadro propício à produção; costumamos designar esses momentos por inspiração. No meu caso a tensão é um dado resultante do pensamento, pensar o concreto, os problemas que o ser pessoa enfrenta: sociais, filosóficos ou procura do sentido, indagação subjectiva, a nossa relação com ou a presença da Natureza e do outro, em nós.
Para mim, as palavras são uma espécie de cascabulho que a imagética tem que trabalhar em contexto emocional, criando entidades semânticas renovadas; isto é o acto poético, cuja materialidade-imaterial fornece prazer, enquanto culturalmente, produz sentido ao ser humano. A poesia pode ser material, como a fome, por isso se diz que, – nem só de pão vive o homem!
Tiago Nené
É um quotidiano em que a poesia é cada vez menos procurada, ao contrário de há uns anos em que havia claramente mais entusiasmo pelos segredos da escrita.
Tornei-me um ser mais cerebral e creio que isso se reflecte na minha poesia, que é muito mais fria do que antes. Busco explorar ideias. Ao leitor caberá encontrar a poesia que mais gosta no meio dessas palavras.
Gosto de escrever à medida que vou lendo outros autores. Preciso de ir buscar inspiração aos outros. É lá que encontro a motivação certa. Não tenho horários para a escrita. Neste momento escrevo quando tenho um projecto em mãos. Quando é assim, posso escrever durante o dia, entre tarefas profissionais. De preferência ao ar livre, com uma chávena de café. A ouvir música. Uso papel e caneta. Depois dá-se processo de reescrita, que é no computador.
Gabriela Rocha Martins
Não ,não sou .nem o princípio nem o fim .não estou nem no aqui ,nem no agora .estou e digo .falo .escrevo .brinco com as palavras e com os leitores com quem estabeleço jogos de fuga ou persuasão .como o faço ,diariamente ,comigo e com os outros .não gosto de compromissos .gosto do Ser-em como premissa de uma vagamunda da palavra .é com ela e só com elas que me assumo .liberta .tudo o mais é voragem , até porque o meu livro de horas há muito que se fechou
sou ,por natureza e vocação ,uma amante do belo .o visual tem imensa importância no meu delírio escrevente .por isso ,não pontuo ,ou quando o faço ,por uma questão estética ,arrumo a vírgula e o ponto final à palavra que ,cúmplice ,se avizinha .não uso maiúsculas ,porque o computador é a minha tela e sou “uma senhora muito bem educada .não berro ,escrevo” ( exige-se uma gargalhada no fim desta frase ) .desconstruo e construo palavras ,naquele jogo que estabeleço com a Língua e o leitor .pergunto-vos? como se abraça? com os braços ,não? então o hífen ,também meu companheiro ,ajudar-me-á a juntar os braços ,afim de a-braçar ,porque o a-braçar traduz uma acção contínua .contrário ao hífen que junta ,o ponto final separa .se eu permitir ao leitor duas leituras ,porque ficar-me ,apenas ,numa? Assim ,desconstruindo palavras que vou pintando na tela/ecrán do meu computador ,único meio de poetar .por fim
Vítor Gil Cardeira
Sou um observador de tudo o que mexe e do que está parado. Posso ficar longos tempos num café, na praia, a uma janela, a ver a fauna que passa. E isso, de vez em quando, dá-me bons motivos para escrever: um cão que passou com o dono, um tipo alto com chapéu estranho, uma mulher da Serra que transporta um cesto, uma mota barulhenta, enfim, coisas sem aparente interesse que despoletam em mim qualquer química que me leva à escrita. Como se vê, não tenho quotidiano de poeta.
Infelizmente, quase só escrevo no Inverno. Preciso de chuva, frio, de dias sombrios e, mesmo, de tempestade para escrever. Ando a ver se me aventuro nos dias mais claros, mas a coisa não tem sido fácil. Talvez por isso a minha escrita seja tão agreste, rude, triste e sombria.
Andar sempre com um bloco de apontamentos para tirar notas. Meter “buchas” no texto já preexistente: escrevo, escrevo, escrevo e, depois de uma narrativa já estruturada e consistente, vou introduzindo pequenas frases nesse texto como que a dar-lhe espaço, textura, respiração. Às vezes mudando mesmo o sentido do texto original. Uma espécie de enxertia no tronco genético. Já a poda, o deitar fora e cortar, me custa muito.
Miguel Godinho
Não existe uma fronteira entre o eu poético e o eu do quotidiano. A poesia acontece a toda a hora, em qualquer lugar. A poesia existe em todas as coisas; tão depressa sou um ser burocrático, quanto um ser sensível/emocional, atento às coisas fundamentais do mundo. Nunca deixo de pensar e de descontextualizar e/ou de inverter a ordem das coisas. A poesia – e a arte, em geral – passa muito por aí: por trocar a ordem das coisas, virá-las ao contrário, senti-las de todas as formas possíveis.
Como disse, a «magia poética» acontece a qualquer hora, em qualquer lugar, em qualquer contexto. Não há horas para as coisas e para a vida se revelar, temos é de estar atentos. O facto de qualquer coisa ser, digamos — existir — ou acontecer já acarreta em si uma dose de poesia enorme. A vida é em si mesma um mistério enorme.
Escrevo muito sobre qualquer coisa – ou tendo por base qualquer coisa: uma notícia de jornal, uma ideia de um livro, uma deixa popular, um aforismo. acredito imenso na ideia de que nada se inventa, tudo se transforma.
Luis Ene
No outro dia, um amigo, que é poeta, dizia-me que enquanto ele era poeta apenas quando escrevia, eu, por outro lado, era sempre poeta. Num país em que se insultam as pessoas dizendo-lhes que são uns grandes artistas – estejam com atenção em momentos de maior aperto rodoviário – não sei se ser sempre poeta será um elogio, no entanto acredito que existe poesia fora do poema e estou sempre disposto a encontrá-la no meu quotidiano. Não sei o que é a poesia, mas talvez seja esse mistério indefinível que existe no quotidiano e a que muitos poemas tão bem conseguem dar forma.
Como a minha escrita é habitualmente breve, privilegio a escrita com caneta e papel, e confesso que me sinto mais próximo de mim e da minha verdade quando o faço. A escrita assim realizada está mais próxima do corpo e da respiração, sensação que em mim de outra forma se perde. A mão que escreve faz mais sentido assim.
Quando escrevo, quando estou mesmo a escrever, estou-me nas tintas para o dia, hora ou estação do ano, ainda que goste sobretudo de escrever muito cedo, desde a alvorada, e tenho pouco tempo no meu dia-a-dia, pelo menos mental, para escrever. Julgo que a brevidade se instalou na minha escrita por esse motivo, ainda que um texto breve possa exigir mais tempo do que parece e solicita muitas vezes a experiência de toda uma vida.
Marco Mackaaij
Não costumo ter ataques de poesia nos sítios apropriados (em frente ao mar – almejando lá voltar depois das marés da morte -, em cima de cordilheiras líricas – para ser mais alto -, em camas ofegantes de cortesãs com línguas de mel e corações de pedra, em gaiolas intelectuais para rouxinóis urbano-depressivos, ou em becos malditos, mal iluminados e altamente recomendáveis para jovens poetas de boas famílias em decadência).
As ideias menos banais assaltam-me na cozinha, a descascar batatas ou a arrumar loiça, ou algures num sítio surpreendente entre o leite do dia e as pizzas congeladas do Continente. Tudo muito pouco adequado, mesmo para a carreira de um poeta menor, sem tempo para grandes epifanias. Enfim, as ideias que sobrevi vêm desde o pagamento na caixa até ao silêncio crítico da madrugada seguinte, sozinhas e abandonadas, sem pingo de poesia, no subconsciente reservado para o efeito, entrego-as aos dedos e à sabedoria do teclado.
Mariano Alejandro Ribeiro
A poesia vem por momentos. Podem passar dias, semanas em que não escrevo nem penso em escrever, e depois dou por mim em alturas de muita produção, em que qualquer circunstância, frase, cheiro são o ponto de partida para criar alguma coisa.
Acho que a poesia está latente em tudo, enquanto componente do nosso quotidiano, mas depende muito mais do estado de espírito do poeta, se se deixa (ou não) influenciar pelo entorno e ainda se tem convicção de que determinado verso ou poema vale a pena ser passado ao papel.
Quando me ocorre algum verso que me parece interessante aponto-o no telemóvel, às vezes pode chegar a ser um poema inteiro, mas a maior parte das vezes é só um verso ou palavras que na altura me soam bem. De resto, escrevo sempre, sempre no computador, nunca com caneta e papel. Sempre e só de manhã. Também não escrevo em público.
Fernando Cabrita
Escrevo sem agenda prévia. Ou a poesia surge e impõe-se-me, ou não ando aí pelos cantos à procura dela, à cata de “inspirações”. Não escolho horas nem locais. Na verdade, sinto que quando a poesia surge, é ela que escolhe. O que me cabe é estar aberto, intelectual e sentimentalmente, para não me opor a isso; nem querer estabelecer horários ou rituais para que se faça poesia a horas certas, como uma obrigação, ou uma agenda, ou um Borda d’Água.
Não sei se serei a melhor pessoa para falar de vícios ou manias na minha escrita. Penso que cabe a quem leia detectá-los, se os houver, e expô-los. É esse, aliás, um dos papéis do leitor, figura que tantos escritores alegadamente desprezam ao declarar que não escrevem para ninguém, que escrevem para si próprios ou para o futuro ou lá para o que quer que seja, sob a alegação de que os leitores actuais os não merecem. Ora, a poesia faz-se também para os leitores, como a outra face do processo criativo.
* Título da responsabilidade da redacção
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)