Muhsin Al-Ramli nasceu em 1967, numa aldeia do norte do Iraque. É romancista, poeta, dramaturgo, académico e tradutor. Os Jardins do Presidente, publicado pela Topseller, entrou na longlist do International Prize for Arabic Fiction, conhecido como o «Booker árabe». Vive em Madrid desde 1995.
«Um romance extraordinário passado no Iraque de Saddam Hussein, que traz à memória Cem Anos de Solidão e O Menino de Cabul»… Com esta frase intenta-se seduzir o leitor a entrar neste mundo fabuloso que, de início, evoca realmente a atmosfera de Macondo ou o imaginário do realismo mágico latino-americano: veja-se, por exemplo, o caso de Isma’il que em rapaz cortou a língua de um bode e desde então perde a voz, até que anos depois as palavras que lhe saem num grito coincidem com o momento em que «reza a história antiga, (…) uma estranha massa amorfa com um corpo gigante e uma cabeça minúscula chamada América atravessou os mares e ocupou um país chamado Iraque» (p. 8)
A primeira frase do romance é, aliás, tão emblemática como o início da obra-prima de García Márquez: «Num país onde não havia bananas, ao terceiro dia do Ramadão, a aldeia deparou-se, ao acordar, com nove caixas de bananas, cada qual contendo a cabeça degolada de um dos seus filhos.» (p. 7). Todavia Os Jardins do Presidente, de Muhsin Al-Ramli, é uma narrativa que rapidamente se distancia de tudo e ganha vida própria.
Tariq, Abdullah Kafka e Ibrahim nascem em 1959, em meses seguidos, e desde logo se tornam inseparáveis. Até que a guerra contra o Irão deflagra (e dura 8 anos), e Abdullah é preso pelas forças iranianas em 1982. Em 1990, o Iraque invade o Kuwait. A guerra torna-se o estado natural das coisas e «quanto mais se adentravam no deserto (…) mais mergulhavam na guerra» (p. 59). Em 1991, as forças aliadas desencadeiam o ataque terrestre a partir das areias da Arábia Saudita:
«O deserto, que se vira abandonado durante séculos, foi transformado num mar de ferro e fogo. O cenário era nada menos que apocalíptico, demonstrando o poder que aquela pequena criatura, o homem, conseguira alcançar, capaz de transformar a face da natureza de forma aterradora e esmagadora.» (p. 62)
Nas primeiras 200 páginas temos uma narrativa intrincada repletos horrores da guerra, mas sobretudo de histórias que se cruzam. Todas as personagens têm a sua história, sempre contada na primeira pessoa, como é o caso de Ibrahim que procura deixar o seu legado à sua filha Qisma (significa destino), vendo-a como a extensão natural da sua história. O romance passa depois a uma segunda parte, no que parece uma estrutura desarmoniosa, mas conforme prosseguimos percebemos como se fecha o círculo deste mundo, tanto que o penúltimo capítulo é um eco do primeiro, voltando à frase de abertura do romance. É quando Ibrahim se muda para a cidade de Bagdad que o romance ganha outro fôlego. Como funcionário nos jardins de um dos vários palácios do Presidente, Ibrahim é supervisionado por Sa’ad, que ao longo de várias páginas, descreve a opulência dos “palácios do povo”, em descrições hiperbólicas ao estilo dos contos das Mil e Uma Noites. A única vez em que Ibrahim avista o Presidente no jardim é justamente quando ele assassina um músico emblemático do país. O próprio nome de Saddam Hussein, ao jeito do realismo mágico, nunca é mencionado; quando Qisma dá o nome do líder ao filho, Ibrahim recusa-se terminantemente a chamá-lo pelo nome.
Ibrahim é depois promovido de jardineiro a coveiro, enterrando milhares de corpos sem nome, «vítimas de um reinado impiedoso de terror», nos jardins do Presidente…
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de novembro)