O quadro atual geopolítico de elevada instabilidade na Europa merece contínua reflexão. As palavras que se seguem são motivadas pela escassez do uso da palavra “paz” desde que o primeiro-ministro britânico Boris Johnson esteve em Kiev, pelo recente anúncio (mais um) dos EUA – envio de 100 milhões de dólares em equipamentos militares para a Ucrânia –, pelas palavras proferidas por John Kirby, porta-voz do Pentágono (“O fluxo de armamento na região continua a um ritmo incrível”) e pelas palavras do Presidente da Ucrânia, o qual prometeu fornecer armas a todos que quiserem.
Sabe o que acontece às armas que supostamente são enviadas para a Ucrânia? Talvez poucos saibam. Os próprios EUA não sabem e não estão preocupados com tal situação. A armas estão na Europa – logo é um problema da Europa! Devido à fácil portabilidade dos milhares de sistemas americanos cedidos (drones “kamikaze”, FIM-92 Stinger, FGM-148 Javelin, AT-4 antitanque, munições e mais munições, …), o mais certo é apenas ser do conhecimento de quem os tiver nas mãos. Mas, o leitor reconhece que as motivações/objetivos daqueles que vão ter esse equipamento nas mãos no presente, poderão não ser as mesmas no dia de amanhã? Quando a operação militar terminar, sabe o que vai acontecer às armas enviadas pelos EUA, as quais continuarão a circular na Ucrânia? Sabe quanto poderão valer algumas dessas armas no mercado negro? A probabilidade de algumas dessas armas acabarem nas mãos de outros militares/milícias que não gostaríamos de ver armados é elevada!
Acontece que, lamentavelmente, o principal objetivo dos EUA neste conflito é bem diferente daquele que aparenta ser (sugere-se a leitura do relatório da Rand Corporation, 2019: Extending Russia Competing from Advantageous Ground). Para os EUA todos os meios justificam os fins: enfraquecer o seu arqui-inimigo militar – a Rússia. Essa tarefa pode tornar-se mais fácil, hoje, comparativamente ao que foi no passado, porque o Sr. Biden tem uma forte aliada – a Sra. Ursula von der Leyen. Sim, no passado… Na verdade, os EUA são especialistas em potenciar condições para esse tão desejado enfraquecimento. Poderíamos trazer aqui vários exemplos dessa estratégia, mas vamos, por agora, recuar até ao Afeganistão – um país com uma história complexa e repleta de conflitos e guerras – recordando a Guerra Afegã-Soviética, entre 1979 e 1989, para melhor compreendermos o real perigo do presente.
Recuemos até 1978…
Nur Muhammad Taraki, um político comunista, chega ao poder. Nur Taraki assinou um Tratado de Amizade com a União Soviética, a 5 de dezembro de 1978, o qual expandiu enormemente a ajuda soviética ao seu regime. Simultaneamente, procurou impor um conjunto de medidas, as quais viriam a colidir com o perfil da sociedade: uma reforma agrária, a introdução de uma educação laica, alterações da lei de casamento (fim do casamento forçado), permissão da entrada de mulheres na política, entre outras. Estas medidas foram terrivelmente impopulares, tendo promovido desordem social e estimulado ainda mais a formação de grupos rebeldes, conhecidos como mujahidin, em diferentes partes do Afeganistão. No início de 1979, vinte e cinco das então vinte e oito províncias do Afeganistão eram consideradas inseguras, em consequência da resistência armada contra o governo.
Apesar das repetidas tentativas, Nur Taraki não conseguiu convencer a União Soviética a intervir em apoio à restauração da ordem civil. A 14 de setembro de 1979 o seu governo é derrubado e o próprio líder assassinado a 8 de outubro. Hafizullah Amin ascende ao poder. A morte de Nur Taraki foi um fator que levou à intervenção soviética em dezembro de 1979. Com essa intervenção, Hafizullah Amin foi destituído do poder e Babrak Karmal (antigo vice-presidente) foi empossado, como novo presidente do Afeganistão. Consequentemente, os mujahidins declararam uma guerra santa (jihad) contra os soviéticos.
Provavelmente, teria sido um conflito de curta duração se os EUA não tivessem interferido, pois, em meados de 1980, as forças governamentais e os quase 120 mil soldados soviéticos detinham o controlo das principais cidades e vias de comunicação. Rapidamente, os EUA perceberam que seria mais interessante a manutenção dessa guerra por um longo período, pois tal teria um forte impacto na economia soviética. Para potenciar esse prolongamento, a Agência Central de Inteligência (CIA) financiou e armou os mujahidins, apoiando assim a jihad. Essa operação secreta viria a ser conhecida mais tarde como “Operação Ciclone” – uma das operações da CIA mais longas e dispendiosas, realizadas até hoje. Entre aqueles que lutaram contra os soldados soviéticos e foram financiados diretamente por dinheiro dos EUA encontrava-se Osama bin Laden. Este nome é-lhe familiar? Certamente que sim. Seria expectável que as motivações/objetivos de Osama bin Laden tivessem mudado tanto, com o passar do tempo?
Regressemos à atualidade…
Os EUA não podem “brincar com o fogo” na Europa, com o consentimento da Sra. Ursula von der Leyen. Não é só com armas que se defende a Ucrânia. Os EUA sabem que nem todas as armas e munições fornecidas à Ucrânia vão ser utilizadas exclusivamente para combater o exército russo. Num futuro não muito distante, intencionalmente ou não, vão ser utilizadas para servir outros fins. Estaremos preparados para o aceitar? Certamente não estaremos, assim como os EUA não estiveram, quando foram alvo de um surpreendente ataque suicida a 11 de setembro de 2001, orquestrado por Osama bin Laden, no qual quase três mil pessoas perderam a vida.
Sabendo o sofrimento que as guerras implicam, muito poderia ter sido feito para se evitar mais este conflito, para além daqueles que estão a acontecer em África, no Médio Oriente e na Ásia Meridional (guerras civis, disputas territoriais, genocídios, terrorismo interno, …). Face às ocorrências que vinham a acontecer na última década na Ucrânia, país europeu, a Sra. Ursula von der Leyen e os seus homólogos poderiam ter evitado este conflito através da diplomacia preventiva – na forma de mediação, conciliação ou negociação. Lamentavelmente parece não ter havido interesse. Agora, são forçados a agir, como se tal compensasse as vidas perdidas, a destruição, a pobreza, a fome e o sofrimento a que assistimos e iremos continuar a assistir nos próximos dias, meses ou anos, talvez. A humanidade merece outra consideração – as guerras não têm justificação.