A cidade e a sua identidade patrimonial
As cidades passam ao longo dos séculos por diversas dinâmicas de crescimento, sendo que normalmente no Algarve inicia-se com um centro marcado pelo poder religioso, a sua praça envolvente e uma zona muralhada para proteção dos seus habitantes.
Com o passar do tempo, as extensões das áreas ribeirinhas ocupadas por edificações percorrem o território, acompanhando vias, criando núcleos vividos por populações com caraterísticas comuns de atividades, pescadores e artesãos, assim como comerciantes. Nestes espaços já fora das muralhas, em Faro, consegue-se identificar alguns monumentos: como por exemplo a Alfandega para cobrança de impostos, o antigo Hospital da Misericórdia, as Igrejas de devoção, os Palácios, etc. Estes monumentos são na realidade valores de expressão coletiva, que importa preservar, como elementos primários da nossa identidade. A classificação deste valor patrimonial, o seu estudo e a preservação são uma prioridade incontornável da Administração Local ou Central, que nem sempre tem sido possível cumprir face ao desígnio das prioridades de investimento público um tanto paupérrimas no Algarve.
Neste propósito, em Faro procurou-se salientar este tema, criando um valor de cultura e informação, com uma exposição no Museu Municipal, ao qual se designou: Faro: Marcos de Urbanismo, tendo sido produzido um registo em catálogo acessível ao público. Esta exposição permite acreditar que mesmo sem grandes meios, quando os serviços camarários se envolvem e são suportados por uma vontade política, sobressai a entrega forte à causa, e um valor produtivo de cultura de grande qualidade.
Os Bairros: conjuntos urbanos a valorizar
Para além dos monumentos, a paisagem urbana é essencialmente formada por bairros e por ruas, ou seja, por malhas urbanísticas que permanecem ao longo do tempo, e que apesar de todas as dinâmicas, são facilmente reconhecíveis. Estes Bairros apresentam uma harmonia própria na relação entre espaços públicos e privados, formados por um conjunto de quarteirões, com uma tipologia de lote, e por vezes também com uma linguagem arquitetónica comum. Associado a estes quarteirões, existe algo mais importante, a vivência das suas populações. Concebe-se, assim, a imagem da cidade, não só por um elemento externo, mas pela relação social estabelecida entre as pessoas e os edifícios. Esta identidade sociológica da cidade, associada a uma harmonia arquitetónica de bairro é um valor inestimável e até agora sobremaneira desvalorizado.
Em geral, são nos Bairros que as pessoas vivem de forma mais tranquila, criam relações de vizinhança, por vezes, as crianças ainda brincam na rua e fazem amizades para a vida, assim como, desfrutam de um momento único de pausa, quando tomam o café na esquina. Fui criada num Bairro assim, o de S. Luis em Faro, e parece-me que embora ainda esteja lá, tímido e resistente, ele está ameaçado. Pela pressão urbanística, porque não existe nenhuma regra que evite a destruição das edificações tão caraterísticas, assim como pela facilidade no crescimento em altura, e pela apropriação do estacionamento por veículos de não residentes que escalam a cidade face aos parquímetros.
Para além deste Bairro em Faro, temos, pelo menos identificados, mais quatro: o Bairro do Alto Rodes, o Bairro de S. Francisco, o Bairro dos Centenários, o Bairro das Casas Económicas no Bom João. Em todos eles é muito fácil identificar a sua tipologia, a morfologia de lote, a sua arquitetura, e a relação difícil com o estacionamento. O Bairro de S. Francisco é um dos mais antigos e provém de um plano de urbanização apresentado pelos proprietários em 1919, tendo sido somente concretizado em 1930. O Bairro de S. Luís surge após a elaboração do Plano Geral de Urbanização do João Aguiar em 1945. Duma maneira geral, estes bairros foram criados numa lógica de planeamento dos anos 40 e 50 do séc. XX, com um enorme respeito pelo desenho de fachada e pelo projeto. Foram transpostos para as regras urbanísticas, esse mesmo desenho, revelando um grande detalhe de composição, e um importante valor de conjunto.
Cidade viva: conservação / evolução, que ordenamento queremos
Como já referia Aldo Rossi, no seu livro: “A Arquitetura da Cidade”: “As cidades normalmente têm um ciclo ininterrupto de desenvolvimento; os problemas das cidades mortas só tangencialmente dizem respeito à ciência urbana, elas são relativas sobretudo ao historiador e ao arqueólogo… A forma da cidade é sempre a forma de um tempo da cidade”. Assim, a dinâmica da evolução de uma cidade viva é importante, mas a sua tendência natural não é a de conservação, o que poderá gerar atuações boas ou más face aos interesses coletivos. Estará assim, sobretudo no papel da Administração Pública, gerir o processo de planeamento e do correto ordenamento do território de forma antecipada, identificando os elementos que nos caraterizam e que são importantes preservar.
A revisão do PDM de Faro, hoje já publicamente exposto, foi gerada com estas preocupações subjacentes, e daí contemplar uma forte componente de inventariação patrimonial, nas quais os Bairros estão identificados, caraterizados e regrados urbanisticamente. Este aspeto fundamental da estratégia de ordenamento é um cunho político que me orgulho de ter participado, mas que obriga à restrição do direito privado eventualmente. Será certamente um caso de estudo a analisar no futuro, se as regras criadas foram suficientes, ou se mais tarde se concluem que afinal não tinham sido tão densificadas que tivessem evitado o pior.
A vivência nos bairros é o que de mais humano nos carateriza, e esse facto urbano permite-nos uma pausa saudável no reboliço das cidades, dos centros comerciais, ou dos edifícios de escritórios. Esta pausa não pode ser tímida nem intimidada, seja pela pressão urbanística, pelo trânsito ou até pelo ruído, nalguns casos. O problema da ocupação por estabelecimentos de bebidas que utilizam espaços históricos é complexo, porque, por um lado, criam economia, por outro, passam a criar um conflito potencial com quem lá pretende residir. O controlo sonoro por sistemas de tecnologia mais evoluída dos produtores de som, igual para todos, associado a uma rotina de permanência de elementos da PSP que possam vigiar e dar mais segurança às ruas, criava um clima pouco propício ao conflito, mas exige muita ação da parte das Autoridades Locais.
A população e as suas vivências dentro dos Bairros são um elemento fundamental à atratividade das nossas cidades, devendo para tal ser cuidadosamente promovidas, com regulação, com proximidade e com conhecimento profundo das suas realidades. Os nossos filhos merecem viver em bairros saudáveis, com uma pausa para construir os seus momentos de felicidade.
(Artigo publicado no Caderno Cultura.Sul de Fevereiro)