Em 2014, conjugaram-se duas efemérides, os 40 anos do 25 de Abril e o centenário do marechal Costa Gomes, Publicações Dom Quixote, a tal título, fizeram reaparecer as memórias “Costa Gomes o último marechal”, entrevista de Maria Manuel Cruzeiro. É uma obra que se lê sempre com redobrado interesse. Francisco da Costa Gomes foi seguramente o oficial mais brilhante das Forças Armadas portuguesas, ao longo do século XX. Amigos e inimigos consideraram-no como o homem que ia tendo razão antes de tempo. No início da sua carreira militar distintíssima, colocado em Macau, apercebeu-se que na Índia e em Macau não havia qualquer possibilidade de aguentar posições, aí havia todos os ingredientes para começar a catástrofe da expulsão dos portugueses. O marechal na entrevista observa que em 1949 ainda era uma boa altura. Na Índia mal se falava português, era obrigatório o ensino do concanim (“tirando os velhos goeses, que herdaram o sangue do tempo de Afonso de Albuquerque, apenas havia umas seis mil pessoas a falar português”). Mas o seu pensamento ia ao arrepio dos ultranacionalistas, o império não era para discutir, era para preservar até à morte.
Costa Gomes ganhará esporas na NATO, será o único oficial português a ter acesso aos mais altos segredos nucleares. Fará um estudo sobre a situação militar nas colónias, e refere a necessidade premente de rever o conceito de estratégia, entra em rota de colisão com Santos Costa que acreditava na iminência do novo conflito mundial. Em 1958, é subsecretário de Estado do Exército, teve então oportunidade em organizar as forças ultramarinas do que fora preconizado por Santos Costa. E não esconde, em 1959, que tanto em Angola como em Moçambique a organização militar era inadequada para a guerra subversiva. Não lhe deram ouvidos. Até eclodir a guerra, políticos e militares garantiam que os africanos se sentiam legitmamente portugueses. Em 1960, tem o seu pensamento formado sobre o Ultramar. Há dois blocos: o africano e o asiático. “Sobre o bloco asiático, considerava que a nossa acção se deveria orientar o mais rapidamente possível no sentido da descolonização, porque, além de não nos podermos apoiar na defesa, a manutenção desses três territórios não justificavam um esforço muito grande. Devíamos concentrar a nossa atenção nas colónias que estavam mais próximas”. A Abrilada, em 1961, é uma tentativa de negociar o que era possível negociar, os EUA mostravam-se dispostos, em cooperação com a ONU, a apoiar Portugal numa descolonização que dispusesse de tempo suficiente para deixar instituições sólidas, previu-se mesmo doze anos. A linha dura prevaleceu, Botelho Moniz foi afastado, e Costa Gomes também por arrastamento. Salazar decretou o “rapidamente e em força”. Costa Gomes foi colocado como professor do Curso de Altos Comandos, no Instituto de Altos Estudos Militares, em 1964. No ano seguinte será nomeado segundo-comandante da região militar de Moçambique. Reconhecido por todos deixará uma situação significativamente melhor. Mas já não tem ilusões e comunica a quem de direito: a solução para o problema colonial era política e não militar. Segue para Angola, onde permanecerá até ser nomeado para a chefia do Estado-maior general das Forças Armadas. Será chamado à Guiné no momento crítico, em Junho de 1973, Spínola advertirá o governo que se caminhava para o colapso militar. Costa Gomes propõe a alteração do dispositivo, retirada de todas as forças que estavam ao alcance dos morteiros de 120, Spínola começa por dizer que sim, depois recusa e pede a demissão. O regime descontrola-se e assim se chega ao 25 de Abril, Costa Gomes terá uma posição na sombra até ao 28 de Setembro, arcará sobre os seus ombros tudo quanto se irá passar até ao 25 de Novembro, onde lhe coube o papel capital de impedir a radicalização dos conflitos, fez poupar o país a um banho de sangue. Todo o seu depoimento refere constantemente que aprendera muito com a guerra civil de Espanha, tudo faria para que Portugal não vivesse semelhante carnificina.
É uma entrevista que permite iluminar e projectar um homem de meridiana inteligência, que falava pausadamente, com uma voz rouca, a quem chamavam anti-herói, melífluo, manhoso, o Chico rolha. Foi a sua ponderação que contribuiu decisivamente para uma atmosfera de temperança e diálogo, foi ele a instituição soberana que nos encaminhou para a democracia que somos hoje. A despeito de rancores velhos, Costa Gomes é a figura que se agiganta na tormenta e nos levou a bom porto. Reler esta entrevista é conhecer a fundo o militar que tinha razão antes de tempo.
* Assessor do Instituto de Defesa do Consumidor e consultor do POSTAL