A covid-19 chegou e com ela todos os setores foram afetados. O confinamento colocou a arte de quarentena, cancelando espetáculos de música, cinema, teatro e exposições de pintura. As mãos que outrora aplaudiam, estão agora mais desinfetadas e as pessoas passam mais tempo em casa, tendo a lotação dos espaços também sido reduzida. Contudo, quem faz arte não deixa de comer.
Começou por ser um grupo local de comerciantes que se juntaram para fazer matrafonas no carnaval, com nomes conceituados em Portimão, tendo um público muito abrangente, pela situação insólita a que se pro punham: estar em cima de um palco vestidos de mulher. Nasceu desta forma o Teatro Boa Esperança de Portimão, que conta com a Revista à Portuguesa do Boa Esperança, já com mais de 50 anos de tradição, que tem crescido e evoluído ao longo destes anos.
O autor, ator, encenador, relações públicas, diretor comercial e financeiro, Carlos Pacheco, fala da situação da covid-19 e do modo que esta alterou todo o guião do Boa Esperança. Começa por explicar que em março, quando surge a pandemia, “estava tudo preparado para o nosso próximo espetáculo e eu recebi um telefonema da câmara a dizer que tudo iria ser cancelado”.
Quando em dezembro o vírus surge na China, Carlos Pacheco pensou “vamos viver mais ou menos o que assistimos na altura da gripe A” As dimensões da covid-19 eram desconhecidas, mas a verdade é que o pano vermelho dos espetáculos acabou por fechar-se.
“Estava tudo preparado para o nosso próximo espetáculo e eu recebi um telefonema da câmara a dizer que tudo iria ser cancelado”
Em termos da gestão económica, o responsável afirma que “pensámos que íamos ter uma retoma ao fim de um mês, depois do nosso investimento de 16 mil euros (em guarda-roupa, caracterização e adereços)”. Neste valor, não entram os números que foram efetuados para assegurar a equipa, que trabalhou durante dois meses, e onde entram roteiristas, atores, bailarinos e técnicos. “Se fossemos contabilizar a outra parte, chegaríamos facilmente aos 30 ou 40 mil euros”. Depois do cancelamento, entrou o confinamento e neste momento não haverá mesmo estreia. “A nossa sala é pequena 250 lugares, mas devido às medidas da Direção-Geral de Saúde (DGS) era impossível fazer o teatro”.
Depois do cancelamento, Carlos Pacheco reuniu-se com a sua equipa para falar do projeto “O Sonho do Ernesto”, que teve sucesso no Natal do ano passado, e “por começarmos a ver os Bombeiros ir cantar os parabéns às portas das pessoas, pensámos: ‘porque não fazermos nós isto’?”. As licenças foram aprovadas e o projeto foi para a frente, tendo “um sucesso muito grande e uma reportagem na televisão”.
A Câmara Municipal de Portimão pegou depois na ideia, feita de forma gratuita, e “tentou na abertura das escolas que nós fossemos atuar lá”. Nasceu assim o “Ernesto vai à Escola sem medo da covid-19”, uma ação de sensibilização para explicar às crianças o que era a doença e como se poderiam proteger, de forma leve e divertida, conforme a idade o merece.
Com a chegada do verão, chegou também o plano de contingência para a abertura da sala maior. A autarca Isilda Gomes informou Carlos Pacheco que poderiam assistir ao espetáculo 100 pessoas no mês de agosto. Baseado na experiência do confinamento, o Teatro Boa Esperança abriu o palco para “Marafada Quarentena”, que teve sempre lotação esgotada. Lagoa recebeu também três apresentações, sempre com o público máximo. “Foi o que nós fizemos deixando a Revista na prateleira e pronta a estrear assim que fosse possível”. Quanto à equipa, “todas as pessoas que trabalham de forma mais sazonal ficaram sem trabalho”, explica o empresário. “As verbas a entrar são cerca de um terço das que entravam”, devido à diminuição da plateia e “tudo isto veio prejudicar a classe artística”.
“O país está mal, mas a classe artística está bem pior do que o país”, afirma Carlos Pacheco, que reforça a ideia de que a classe deveria ser olhada pelo Governo. “Eu ainda não estou nessa fase [de passar dificuldades económicas], mas corro o risco de ficar”. O responsável realça também que o público está “descrente” em ir assistir a um espetáculo, de pois de tantos apelos para ficar em casa. “Somos animais de hábitos, vai ser complicado”. Na visão de Carlos Pacheco, “a cultura em Portugal é um parente pobre da nossa economia”.
“A cultura em Portugal é um parente pobre da nossa economia”
“Se não houver um trabalho profundo, que pense na nossa cultura, vamos ter lacunas muito grandes”, continua Carlos Pacheco. No dia 4 de novembro, Marcelo Rebelo de Sousa saudou a iniciativa lançada pela GDA- Gestão dos Direitos dos Artistas, juntamente com a Audiogest, que reuniu donativos no valor de 1,35 milhões de euros para um fundo coletivo solidário de apoio aos artistas e técnicos do sector cultural que ficaram sem trabalho nos últimos meses, fundo que será gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Já a União Audiovisual lembra que continua “a nobre missão de entregar alimentos nas casas e famílias dos profissionais de audiovisual que estão sem trabalho por causa da pandemia” e, para isso, “organiza concertos cujo valor do bilhete é significativamente inferior ao normal, apelando em contrapartida, à compra e entrega no dia, de sacos de alimentos, por parte do público”. Apesar dos consecutivos apoios, realizados até pelo Ministério da Cultura, a arte continua a ser dos setores em Portugal com menor apoio. “Um país sem cultura, é um país mais pobre”, lembra o responsável pelo Boa Esperança.
“Vão aos espetáculos”, conclui Carlos Pacheco.