Fez do Algarve o seu navio. E de Sagres e Lagos, cais de partidas e chegadas para sonhos e descobertas embarcados com a fé, a espada, mais o ouro, as pescas, o comércio e os escravos.
D. Henrique, o infante navegador que a história assim o haveria de registar, concentra em si a glorificação do mito e um mar de interrogações. É luz e sombra. Solidão rodeada de água e gente. Homem de fé e negociador implacável. Sonho e pesadelo.
Este filho de D. João I encarna a epopeia contada de uma certa maneira e que assim se foi afirmando como narrativa dominante: venceu o longe e o desconhecido, o cabo Não e o Bojador, os monstros marinhos e as águas ferventes, levando as caravelas até à serra Leoa.
D. Henrique, a quem lhe coube o princípio dos mares, é também a construção que dele fez Zurara, contador de biografias e de memórias lembradas. E que muitos outros haveriam de replicar por séculos adiante, afirmando a ideia de que só a ele coube ter o feito e a glória que era obra coletiva de uma nação inteira.
O cronista celebrou D. Henrique como um predestinado astral e “príncipe pouco menos que divinal” o qual, perdendo a sua dimensão humana, “passou do palco da vida para o altar”. E assim ficou.
Porém, nem todos lhe copiaram essa retórica de exaltação mística. Por exemplo, outro cronista, Rui de Pina, fez por lembrar que o ‘conquistador’ de Ceuta não evitou os desastres de Tânger e de Alfarrobeira, nem a assombração dos dias! E não deixou de lhe apontar o dedo pelas morte de seus dois irmãos.
Mas, sem lhe retirar os méritos que a história havia de registar como impulsionador dos marinheiros algarvios, levando-os a vencer “o medo e o desconhecido”, a historiografia moderna deixou de se rever neste exclusivismo da narrativa oficial, procurando resgatar da obscuridade, a memória e o papel do infante D. Pedro, nessa fase inicial dos descobrimentos portugueses.
Para estes, a figura do príncipe das Sete Partidas do Mundo ficou injustamente escrita em letra menor na história daquela época. Vítima de conspirações palacianas e de intrigas de uma certa nobreza senhorial feudal que o levaram à morte em Alfarrobeira.
Nesta perspectiva da história, os dois irmãos são duas faces da mesma moeda, personificando, embora, visões diferentes para o Portugal de então. Porém, essas clivagens ideológicas não constituíram obstáculo para uma cooperação mutuamente profícua. O infante de Sagres recebeu sempre do irmão, enquanto príncipe regente, todo o apoio para a concretização dos seus projetos e empresas, a par das iniciativas da própria coroa.
D. Henrique, administrador da Ordem de Cristo, com sede em Castro Marim, herdara a riqueza dos Templários, e tornou-se também governador perpétuo do Algarve. Ficou, por esse facto, com o monopólio das pescas, dos corais, mais o sabão e o óleo das focas e baleias, tendo recebido ainda a concessão de um quinto do negócio da venda de escravos que começavam a chegar a Lagos, “filhados pelas suas embarcações no litoral africano”.
Até à sua morte em 1460, acumulou uma enorme fortuna que lhe serviu para financiar as iniciativas que promovia na expansão e defesa das praças marroquinas e na exploração da costa atlântica, compensando generosamente, com honras e mercês, os marinheiros e escudeiros de sua Casa.
A sua vida reparte-a, por longos períodos, entre Tomar e o Algarve. Aqui fez morada em Lagos e na Raposeira, num monte sobranceiro à ermida de Nª Sra de Guadalupe. Mas foi de Lagos que fez a sua base operacional. A partir daqui recrutou e mobilizou pescadores e marinheiros conhecedores dos mares e da navegação. O Bojador era o limite da navegação possível. Para além dele ficavam o mistério e os abismos do medo!
Não se sabe ao certo em que ano passou D. Henrique a permanecer “definitivamente” no Algarve. Sabe-se sim que, aos 21 anos, em 1416, aqui veio com uma armada de socorro a Ceuta. E desde então passaram a ser cada vez mais frequentes as suas visitas ao Algarve.
Alberto Iria, pescador de livros que lhe assinalam os dias, seguiu–lhe os passos e foi encontrá-lo em lugares tão variados e dispersos como Sagres, Castro Marim, Lagos, Tavira, Faro e Bansafrim. Um dia em Silves, no seguinte em Albufeira ou em Estômbar, outro ainda na Mexilhoeira, Alvôr, Quarteira ou a rezar na Raposeira.
Certo é que, em 1437, após ter esperado cinco meses em Ceuta para “ver a conclusam que no livramento do Infante Dom Fernando se tomava… se veo ao Algarve e aqui fez a sua morada”, tomando verdadeiro contacto com a vida dos pescadores, navegantes e mercadores que há muito se iam aventurando pelos águas da costas de Granada e do levante.
Antes de se fixar de forma mais permanente no Algarve, sobretudo em Sagres e Lagos, sabe-se que estava nesta cidade quando Gil Eanes dobrou o Bojador, em 1434, e que, cinco anos depois, recebeu carta e autorização do regente D. Pedro, para edificar a sua “villa no Cabo de Trasfalmenar”, que ambos visitaram, e a que lhe daria o nome Villa do Infante: “mynha villa de Sagres onde vivo no cabo do mundo”, como escreveria mais tarde.
E estando em Lagos a 7 de Agosto de 1444, assistiu ao regresso das caravelas de Lançarote de Freitas com 236 escravos e mandou tirá-los e “levar a aquelle campo que esta a alem da porta da villa” os mouros cativos trazidos de África, “dos quais o infante havia de haver o seu quinto” do negócio.
Pressentindo que estava próximo o seu fim, redigiu a 28 de outubro de 1460, o próprio testamento autenticado e “asynado per my e assellado do sello das mynhas armas feitas em mynha villa do iffante”.
Henrique, o Navegador, como ficou imortalizado, faleceu a 13 de novembro. Uma quinta-feira. Em Sagres.
Assim o deixou dito, Diogo Gomes, seu moço de câmara: “no anno do Senhor de 1460 o senhor iffante Henrique adoeceu na sua villa, da qual doença morreu em 13 de Novembro do mesmo anno, em uma quinta feira. E na noite em que morreu, o levaram para a igreja de Santa Maria em Lagos, onde foi sepultado honradamente”.
Transladado mais tarde para o Mosteiro da Batalha, ali dorme o sono eterno. Na companhia de seus pais e irmãos. E de D. Pedro.
Fontes: “Crónica da Conquista da Guiné” e “Crónica da Tomada de Ceuta”, Gomes Eanes de Zurara; “Crónica d’El Rei D. Afonso V”, Rui de Pina; “O Intinerário do Infante D.Henrique no Algarve”, Alberto Iria; ”Documentos sobre a Expansão”, Vitorino Magalhães Godinho; “A Maldição do Infante D.Pedro”, Alfredo Pinheiro Marques; “Mito e memória do Infante D. Henrique”, Mª Isabel João; outras